O Pedro, ainda mais escrevendo n’O Indivíduo, dispensa apresentação e explicação. Já eu, nem tanto. Algumas palavras, pois. Aos 41 anos, sou neurodiverso (*), diletante e autodidata. Nenhuma das três circunstâncias foi escolha minha, mas a vida é assim e tive bastante tempo para me acostumar a elas. Novidade mesmo foi a descoberta de que meu antigo desconforto em publicar na internet vem desses traços. Porque um texto é um negócio que carrega uma certa autoridade, e eu não sou autoridade em nada.
Agora, por outro lado, sou, sim, um sujeito muito curioso e gosto de conversas informadas, com outros diletantes autodidatas ou com especialistas cheios de paciência. Então, como, como me comunicar com o mundo? Esse sempre foi o meu dilema.
A gentileza do Pedro em me convidar para participar dessa nova encarnação do Indivíduo vai me permitir testar um novo modelo. A ideia é que meus posts sejam uma amostra dos meus interesses, mas amostra bruta, não formatada sob a aparência de texto especializado. Conversas com amigos, ideias que me ocorrem à noite, fragmentos de leituras, anotações à margem de livros, respostas ao que me irrita, tudo vai virar post. Quem se sentir afinado ou contrariado, entre em contato comigo. Estou no Facebook, twitter (@diogo76) e meu gmail é diogo76.
Para começar em estilo, seguem trechos editados de um e-mail que escrevi a um amigo sobre “Submissão”, do Houellebecq. Digo em estilo porque o editor deste site é doutorando em literatura comparada e fã do autor. Se for para expor nosso autodidatismo diante dos especialistas, comecemos em casa.
(*) ou “autista”, ou “asperger”. O nome é menos importante do que a ideia.
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Duas notas sobre “Submissão”.
Duas questões interessantes, que não vi mencionadas dessa forma em nenhum outro lugar. A primeira é ler o romance como uma alegoria. O protagonista – personagem tipicamente houellebecquiano, um homenzinho sem força, sem tesão vital e sem motivação, flutuando nas ondas da sociedade pós-capitalista, vivendo de sexo e comida congelada – é uma imagem alegórica da França contemporânea. Mas não só isso. Ao contrário dos protagonistas dos romances anteriores do autor, esse tem uma profissão intelectual, professor universitário de literatura, especialista no escritor J.K. Huysman, um decadentista convertido ao catolicismo no século XIX. A questão que se coloca aqui é: a França contemporânea (o protagonista) seguirá os passos de Huysman no século XXI?
Como todos sabem, o livro se passa no futuro próximo, e o cenário é a França em estado de ebulição. Em meio a uma apatia paralisante, o país derrete enquanto combates entre milícias islamistas e “identitários” ardem pelas ruas sem que ninguém tenha coragem de prestar atenção neles. Um partido islâmico se opõe ao Front National na primeira eleição desde a Segunda Guerra em que a direita e a esquerda tradicional não participam do segundo turno. No dia da votação, o protagonista entra no carro e sai sem destino “pela estrada afora”, retomando a alegoria da França sem rumo, à deriva. Apenas sob essa lente é possível aceitar uma daquelas “coincidências” que seriam risíveis em qualquer outro romance, sua parada exatamente no ponto de uma batalha importantíssima, em que um rei franco derrota os muçulmanos que avançavam pelos Pirineus, o que permitiu à França permanecer cristã na Idade Média. Alegoria mais clara do que essa, só no teatro popular daquele período. Em seguida, ele se dá conta que está próximo do santuário da Virgem de Rocamadour, onde se encontra uma imagem românica de Maria com o menino Jesus, talvez a mais importante da França medieval. O narrador recorda ao leitor todos os personagens históricos (reis, santos, cruzados) que peregrinaram até o santuário de Rocamadour e para lá se dirige o protagonista. No entanto, seu encontro com a estátua da Virgem Maria que tanto animou a cristandade medieval francesa é anticlimático, ele não sente nada: sua alma (como a da França) está morta e fechada à Encarnação do Verbo. Esse é o ponto chave do romance, o momento em que se torna claro que o professor não seguirá – porque não consegue – os passos de seu ídolo Huysman. No fundo, essa era sua única saída. A partir de agora, o que lhe resta é se “submeter” à religião do invasor. De certa forma, o livro termina aqui, antes da metade de sua extensão total.
A segunda questão diz respeito ao que vem depois. À essa altura, todos sabem que a França se islamiza. O que não vi comentado foi o brilhantismo no retrato de como isso acontece, jogando com a ambiguidade do título do romance e de sua parte final. Como é sabido, “Islã” significa, literalmente, “submissão” a Deus e, obviamente, o livro de Houellebecq é a narrativa da “submissão” da França ao islamismo. Mas, em nossa linguagem corrente, o substantivo “submissão” tem uma conotação negativa, de alguém que se humilha e rebaixa, o que até seria meritório fazer diante de Deus, mas nunca diante de outros homens. E a impressão que “Submissão”, o romance, deixa no leitor é que a França, assim como o protagonista, se submeteu no segundo sentido, não no primeiro. Últimos homens nietzscheanos até o fim, os franceses não se converteram verdadeiramente ao islamismo, mas sim se entregaram praticamente sem reação a invasores pacíficos que lhes ofereciam pleno emprego, segurança nas ruas e satisfação sexual.