Noite dessas, jantava eu com um bom amigo a serviço do governo federal, e conversávamos sobre a estranha ideia de que o comércio entre países deve ser equilibrado – isso é, que o país A deve vender para o país B o mesmo tanto que B vende para A. Logo comentei, recordando outro jantar, que um empresário reclamava de como os burocratas acham que o comércio é feito entre países, e não entre empresas. O amigo rapidamente trouxe uma história verídica: tendo as autoridades brasileiras comunicado às autoridades de um pequeno país do oriente a sua preocupação com o fato de o Brasil vender muito mais para aquele país do que dele comprava, recebeu como resposta que não havia motivo nenhum de preocupação: se os empresários de lá estavam contentes em importar produtos brasileiros, então tudo bem; aliás, se fossem parar de importar os produtos brasileiros, então de quem importariam?
Em seu aspecto mais básico, a questão é bastante simples: não havendo desonestidade, toda relação comercial é equilibrada. Um compra, o outro vende. Um dá o produto ou serviço, o outro dá o dinheiro. Naquele jantar, logo observamos que, se eu compro uma TV da Sony, não acho que tenho uma relação desequilibrada com a Sony porque ela não comprou os meus serviços. Eu, que sou tradutor, logo imagino o caos provocado se eu fosse ao supermercado que frequento e dissesse que, tendo gastado lá tantos dinheiros naquele mês, agora esperava que o supermercado gastasse os mesmos tantos dinheiros com meus serviços de tradução. Morando aqui em Copacabana, bairro repleto de turistas, talvez eu pudesse servir de intérprete algumas horas todo mês a fim de “equilibrar” essa relação.
Dirão as gentes mais à esquerda que o país não é uma pessoa. Serão aquelas mesmas gentes que dizem que o governo não deve praticar austeridade para sanar dívidas, como faria uma pessoa. E, sendo o governo o produtor do dinheiro, e o maior cliente em muitas economias, admito que possa haver aí alguma complicação, embora o leitor há de convir que o exemplo dado pelos burocratas que assim agem só faz gerar ressentimento. Quisera eu convencer o cartão de crédito de que a solução para a minha elevada fatura é uma ampliação do crédito – e que a negação disso é alarmismo, pessimismo, opressão, maldade.
Mas tergiverso, ou quase. Se o país não é uma pessoa, daí não se segue que o comércio entre países deva ser “equilibrado”, porque, recordando o amigo empresário, só para começar, não é entre países que o comércio acontece, mas entre empresas e consumidores. O país, ou melhor, o governo, está apenas taxando, fiscalizando e aporrinhando. E está violando, com essa crença, a ancestral lei das vantagens comparativas, que diz que produz-se segundo a especialidade. Nossas excelsas autoridades recusam-se a dar vantagens comparativas para o Brasil mantendo um dos piores ambientes de negócios do mundo, e por essa razão as atividades mais lucrativas aqui em grande parte são as mesmas de há séculos: as extrativistas. O mesmo princípio de vantagens comparativas vale para pessoas, sob a forma de custo de oportunidade: se eu fosse parar de traduzir para construir os móveis que utilizo, bem.
Agora, digo-vos uma coisa. Se quiserdes conhecer tragédias de pessoas que foram e são forçadas por seus governos a pagar mais por produtos, a fim de favorecer descaradamente algum empresário local, simplesmente porque governos julgaram que deveriam “equilibrar as balanças comerciais”, isso ao mesmo tempo em que mantinham um ambiente de negócios viciados, basta que reinterpreteis o que sai nos suplementos de economia dos jornais. E se, depois disso, não vierdes nem mesmo uma pequena inclinação para o liberalismo comercial, então só posso dizer: ou tendes um coração de pedra, ou estais a ganhar com esse sistema.