Três dias seguidos a mesma sentença – na primeira página do jornal

Num lance que, francamente, considero um dos mais cômicos desde minha alfabetização, meu querido Diário do Balneário – que também atende pelo codinome de O Globo – colocou, durante três dias seguidos, ao menos até agora, em sua primeira página – sim, na primeira página – a mesma sentença. Ei-la, senhores: “Vaticano enfraquece documento da Rio+20.”

Não, não foram informações diferentes sobre um mesmo assunto. Não foi a sequência de uma história em pleno desenvolvimento no mundo dos fatos. Foi apenas a mesmíssima sentença: “Vaticano enfraquece documento da Rio+20”. No primeiro dia, a sentença veio modalizada por um “até”. Até o Vaticano! Mas como assim? Será que o Diário do Balneário queria dizer que todo mundo foi lá e deu uma enfraquecida no documento, inclusive o Vaticano? Será que o Diário queria dar um tom dramático, shakesperiano, como alguém que perguntasse: até tu, Vaticano?

Mas o fato extraordinário – realmente um homem mordendo um cachorro – é a repetição da mesma informação na primeira página durante três dias seguidos. E a sentença se refere ao seguinte fato, também reportado no mesmo jornal: no documento final da Rio+20, em vez de aparecer a expressão “direitos reprodutivos”, aparece “saúde reprodutiva”.

Não creio que vão me chamar de louco e enraivecido especulador se eu observar que, caramba!, isso realmente deve ter incomodado alguém dentro do jornal. Terá sido um editor, um sócio talvez, que agora se sente chamado a lutar pelas grandes causas da humanidade, tendo esse sentimento sido despertado em seu peito por tão augusta conferência para a qual ele não foi chamado? Alguém que, de tanto tocar um sininho para chamar a empregada, só consegue compreender que o único mal do mundo é ter de sofrer as consequências de suas concupiscências? Ou terá sido alguma senhorita que, sendo ela própria testemunha de que a adoção das visões mais politicamente sustentáveis costuma corresponder à entrada naquela mesma elite a que pertence o editor? Esses personagens são interessantes, mesmo – e não vejo ninguém tentando retratá-los. O Brasil passa por uma troca de elites, é uma situação digna de O Leopardo de Lampedusa, e onde estão nossos romancistas?

Interessante também é que o jornal não conta como aconteceu essa pressão. É algo também muito curioso. Será que o Papa ameaçou os líderes presentes na Rio+20 com a excomunhão? Será que os líderes presentes, após uma conversão em massa ao catolicismo, quiseram mostrar serviço a seus confessores? Hoje o jornal menciona um discurso de Dom Odilo Scherer, que foi nomeado pelo Vaticano seu representante para a conferência. Se um discurso de Dom Odilo Scherer bastou para mudar um documento da ONU e para fazer os jornalistas de O Globo repetirem a sua revolta indignada por três dias seguidos na primeira página do jornal, o que posso fazer além de imaginar uma exortação digna de Jesus expulsando os demônios, que agora se contorcem confusos? Ou, se houver algum jornalista lendo este texto, será que você pode me explicar como foi que o Vaticano alterou o documento final da Rio+20?

Gracejos à parte, não é nem um pouco difícil imaginar qualquer editor explicando que, mesmo tendo repetido por três dias seguidos a mesma sentença em sua primeira página, o jornal não tem ideologia, não tem uma agenda, está apenas informando etc. etc. etc. Caro editor, você pode, dependendo da sua inteligência, ou do quanto já não distingue a sua cara da sua cara de pau, realmente esperar que os leitores acreditem nisso, o que eu julgaria algo que admira e consterna.

Por outro lado, eu mesmo creio que é preciso observar a polarização ideológica cada vez maior do Brasil. Nossas percepções da imprensa estão se americanizando, no sentido de que a ideia de um veículo vagamente neutro já não tem qualquer credibilidade, de nenhum dos lados do espectro – e, nesse sentido, a tríplice acusação de O Globo é apenas um exemplo cômico e caricato. No que diz respeito à religião especificamente, devo dizer que sou suficientemente de classe média para transitar nos extremos das classes sociais sem me impressionar tanto, e cada vez fica mais evidente que a religião hoje é quase uma coisa de pobre, algo que marca (ou estigmatiza, comme vous voulez) aqueles que têm de lutar pela sobrevivência e que os distingue daqueles que tocam sininho para chamar a empregada ou que querem vir a tocar, não importando a opinião que tenham de repetir para que isso se concretize. Estamos a um passo de pensar, como os americanos, em termos de religiosos broncos versus ateus & agnósticos esclarecidos. Que uma elite que aliena e esnoba sem peso na consciência a maior parte da população se julgue a grande defensora do povo, eis algo que, dependendo do dia, me provoca riso ou pesar, recordando-me ora Molière, ora Dostoiévski.

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