Na antiga civilização micênica, anterior até àquela de que fala a Ilíada, havia uma figura chamada ánax. O ánax era mais do que um rei. Fundia autoridade espiritual e poder temporal e em seu palácio se fazia a contabilidade geral do “reino”. Era, em suma, uma mistura de ditador socialista com pajé. Vodu macroeconômico e planejamento espiritual. Provavelmente, aquilo que Julius Evola queria ser quando crescer.
O ánax foi substituído na Grécia pelo basileus, que normalmente traduzimos como “rei”, e por isso coloquei aspas em “reino” no parágrafo anterior. Cada rei da Ilíada era um basileus, como Agamêmnon e Ulisses. Ele estava mais próximo da nossa ideia de rei: basicamente um sujeito que se impõe pela força e que, em troca de uns tributos, promete segurança. Uma espécie de máfia em grande escala, com mais prestígio e rapapés.
Mas o sonho do ánax, é claro, permanece. E, como em muitas esferas, vigora uma dessas regras jamais mencionadas: se você ficar falando que quer ter os poderes do ánax, você é maluco. Se você agir como se fosse o ánax, mas sem falar nada, pode passar por alguém perfeitamente normal.
É no velho ánax micênico que penso quando leio que nossa presidente tem a intenção de romper um acordo comercial com o México porque, veja só, o Brasil está comprando mais do México do que vendendo para o México. Na verdade, perdoem: é preciso ainda desmistificar essa frase. Brasileiros, ou pessoas residentes no Brasil, estão comprando mais produtos que vêm do México do que os mexicanos e residentes do México estão comprando produtos que vêm do Brasil.
Talvez eu seja liberal porque, ao ler uma afirmação como essa, só consigo pensar: “E daí? Bom pra eles.” Eu nem sei se tenho algum produto mexicano. Chego até a pensar assim: “Então o gay pode casar mas o brasileiro tem de pagar mais imposto para comprar produto mexicano? Eu, hein.”
É claro que eu conheço aquelas histórias de “proteção à indústria nacional”. E só consigo imaginar essas palavras ditas por alguém parecido com o Fofão, todo vestido e maquiado, com a autoridade sacerdotal de um Jedi fariseu. Porque elas são inteiramente mistificadas. E podem ser derrubadas por outra mistificação, ou outra metáfora tratada como substância: o bolso nacional. Presidenta Ánax, proteja o nosso bolso, se quiser proteger alguma coisa. Não nos faça comprar algo ruim e caro só para enriquecer um empresário daqui. Eu sei que os mexicanos não contribuíram para a sua campanha, mas mesmo assim, ó, Lordessa Ánax, livrai-nos do nacional caro e ruim, amém.
Fico imaginando um filme. Está lá o ánax em Micenas. Cheio de plumas e pintado de azul. Aparece um sujeito de paletó e gravata, com uma pastinha, e fala com aquele sotaque paulistano que já aboliu todos os sons nasais: “Lorde Ánax, Majestade Macroeconômica, espero não ofender vossa sapiência ao apresentar a teoria das expectativas racionais.” Teoria essa que, hoje, leva a algumas decisões: se não posso comprar o importado barato, prefiro não comprar nada a comprar o nacional caro e ruim. Pode ficar com seu imposto sobre o nada.
Penso ainda no primeiro governador britânico da província de Hong Kong, uma terra em que plantando nada dá, do tamanho de… Bem, digamos que seriam necessárias 7700 Hong Kongs para preencher um Brasil. Esse governador renunciou ao papel do Ánax e decidiu não coletar dados macroeconômicos, para evitar a possibilidade do planejamento. E hoje essa faixa de terra 7700 vezes menor do que o Brasil tem um PIB apenas 9 vezes menor.