Dizem que, com o alistamento militar obrigatório, a Revolução Francesa e Napoleão Bonaparte inauguraram a guerra total. A resposta foi a guerra de guerrilhas. E quando, já no século XX, toda a população passou a tomar parte no esforço de guerra, bem, toda a população tornou-se alvo. A guerra estava por toda parte. E hoje, em resposta ao poder bélico dos maiores, há o terrorismo. A violência está potencialmente por toda a parte.
Por analogia, já ninguém mais julga haver discurso inocente. Quando você fala, está de um lado ou de outro; não está falando como ser humano para outro ser humano. Todo discurso tem interesses, oblíquos ou diretos. Os pequenos terroristas ideológicos creem que “todo ato é político”, inclusive levantar da cama de manhã, para acreditar que estão sofrendo uma agressão e que portanto têm o direito de reagir. Aliás, na minha experiência, quem fala que todo ato é político não tem bom caráter: fuja, fuja simplesmente. Porque essa pessoa acha que todo ato é violento e portanto ela vai reagir.
Posso estar ficando paranoico, mas esse clima intelectual e as possibilidades tecnológicas de armazenamento de informações me fazem ver o futuro como uma grande leitura de Miranda Rights perpétua: tudo o que você disser pode e será usado contra você. Mas nem é disso que eu queria falar.
Eu queria falar de como a interpretação ideológica interfere na apreciação artística. Hoje em dia o mais comum é que tudo seja julgado como burguês ou proletário, conservador ou revolucionário. Toda obra de arte já virou produto artístico e, com isso, componente da identidade de alguém. Antes de olhar o objeto, já fazemos um julgamento do tipo de pessoa que poderia gostar daquilo, e consideramos que essa pessoa gosta daquilo porque confirma a sua visão de mundo, seja do mundo como ela acha que é, seja do mundo como ela acha que deveria ser.
Os melhores autores de hoje (penso por exemplo em David Mamet) estão cientes desse risco e escrevem de modo a tentar driblar essas interpretações. Mas o problema está além deles. Não há praticamente nada que possa levar uma feminista mais acirrada a não enxergar qualquer obra sob o aspecto do feminismo. O mesmo vale para o religioso que vai logo querendo saber se a obra é boa ou má para a alma. Nenhum dos dois é um espectador de boa vontade; os dois só querem elaborar seu index prohibitorum particular. E, dependendo do ânimo, transformá-lo em lei. Mas até por isso também podemos achar que o index politicamente correto é uma imitação, uma resposta às velhas censuras religiosas. Revolucionários e reacionários querem salvar a sua alma, usando os mesmos meios, com um discurso estruturalmente igual, ainda que com referências distintas.
Estamos em guerra, senhores. E, mesmo que você não queira entrar na guerra, você não pode fingir que ela não existe. Já há algum tempo, só os espectadores e ouvintes menos cultos é que não julgam estar numa trincheira ideológica, defendendo esse bem sacrossanto e intocável que é a sua própria identidade pública, como se ela de fato lhes pertencesse.