O processo pelo qual uma política pública ganha legitimidade aos olhos de ao menos uma parte da população pode ser inteiramente distinto do processo pelo qual uma política pública tem legitimidade perante as leis maiores de um país. Na frieza e na calma, as leis maiores são elaboradas com o princípio de evitar a perseguição a bodes expiatórios, e a sociedade ganha uma certa paz porque cada indivíduo acredita que ele mesmo não será vitimado para satisfazer os anseios de ninguém. Assim surge a idéia de delimitar a violência e de uma punição proporcional ao crime. A lei é, ou deveria ser, uma autoconsciência de nossa natureza violenta: é por sabermos que queremos o sangue dos bodes expiatórios que criamos o princípio constitucional de que ninguém será obrigado a produzir provas contra si mesmo. Para sacrificar o bode expiatório, precisamos acreditar na sua culpa; coagi-lo a admitir-se culpado é uma forma tão perversa de maldade que sua negação é mesmo um dos princípios basilares da justiça.
Esta é uma questão de Estado. O problema é que o Estado fica nas mãos de governos, e os governos são comandados por políticos. Os quais são eleitos pelo voto direto. E, para eleger-se e legitimar-se, eles precisam sacrificar bodes expiatórios. Collor era o “caçador de marajás” que ia “matar o dragão da inflação com um único tiro” — acho que nenhuma outra campanha presidencial que eu tenha presenciado se baseou tão fortemente no poder do herói para eliminar o Mal, e decerto isso tem a ver com a transformação posterior de Collor em bode expiatório. (Talvez só a legislação brasileira, com seus direitos de imagem etc. etc. etc., tenha impedido até agora a utilização desse material histórico em obras dramáticas — francamente, poucos episódios são tão interessantes, tão abertamente míticos, tão legitimamente trágicos, mas isso é outro assunto.) O fato é que todo político, para ganhar e manter apoio, precisa criar um bode expiatório e matá-lo, e ajuda muito na criação de um bode expiatório se ele já tiver cara de culpado.
Aí entra o motorista embriagado. Sem bater o carro, sem causar acidentes, sem matar ninguém, ele já tem mais cara de Caim do que o motorista sonolento, do que o motorista que dirige devagar demais. O motorista embriagado causa acidentes — eis uma afirmação que desperta a nossa fúria vingativa e legitima a violência contra ele. Acabamos por esquecer que no Brasil já existem legislação e jurisprudência bastante duras, e, creio, bastante sensatas, contra o motorista embriagado que causa acidentes. Sim, eu mesmo acho que, se você dirigir bêbado e matar alguém, você merece o mesmo tratamento que uma pessoa que tenha saído de casa de revólver na mão, e o Estado brasileiro (corrijam-me, abogados), com a idéia de “dolo eventual”, tem uma opinião semelhante.
O detalhe, nada pequeno, é que você pode dirigir embriagado — e não esqueçamos que, para os padrões draconianos da Lei Seca, ter feito uns bochechos com um produto com álcool para limpar a boca e ter tomado 10 doses de uísque não são coisas substancialmente distintas — e não causar acidente nenhum. O argumento de que, ao beber, você aumenta o risco, também é válido para o sono, para a empolgação com a música no som do carro, para a raiva do motorista que, num Honda ou num Toyota (as pessoas em Hondas e Toyotas sempre dirigem devagar), admira a 40 km por hora o fétido mangue da Linha Vermelha, com sua pitoresca casa flutuante, para a mera imprudência que pode haver em sair de carro no Rio em dia de chuva, para qualquer grande preocupação que perturbe a mente. A escolha do motorista embriagado, ou simplesmente do motorista que bebeu e continua tão capaz de dirigir quanto antes, demonstra a arbitrariedade da escolha e, com isso, a natureza da perseguição ao bode expiatório. Não são as ruas que estão ficando mais seguras: é o prefeito Eduardo Paes que está ficando mais bonito aos olhos das pessoas que, em vez de assumir suas responsabilidades e entender que há um risco em meramente sair de casa de carro, querem transferir o mal para aqueles de quem não gostam.
A fúria vingativa provocada pelo ressentimento difuso leva ao desprezo pelos princípios constitucionais. “Vamos encurralar de surpresa esse bando de bêbados e coagi-los a incriminar-se.” O Estado fica nas mãos do governo. A Lei fica na mão de aproveitadores. A sociedade fica à mercê dos políticos, que dirigem os recursos da polícia para a sublime causa de, indiretamente, angariar para eles votos e a reputação de justiceiros.
Um jornal como O Globo pode posar de razoável ao defender as blitzes da Lei Seca, e qualquer pessoa pode afetar indignação diante deste meu texto que as condena. Essa indignação é estruturalmente idêntica àquela que sentimos ao ver alguém afirmar a inocência do bode expiatório de nossa preferência. “Você defende o capitalismo? Então você é a favor da fome!” “Você defende a religião? Então você é a favor da dominação das consciências!” E no entanto, neste caso aqui, o raciocínio é simples: se você acredita que ninguém deveria ser obrigado a incriminar-se, então deveria defender, ainda que a contragosto, que ninguém seja coagido a usar um bafômetro. Isso sim é ser razoável, usar a razão, e não posar de razoável, que é o que o Globo faz e é aquilo que qualquer um faz, rico ou pobre, sofisticado ou tosco, quando quer praticar a violência e ainda assim parecer limpinho e ponderado. Aliás, a diferença entre a sociedade chique e a sociedade feiosa muitas vezes está apenas nos bodes expiatórios que uma e outra escolhem, e na clareza da arbitrariedade da escolha, com a ressalva de que sempre percebemos que os bodes expiatórios escolhidos pelos outros são arbitrários, e muito raramente chegamos a perceber essa arbitrariedade em nós mesmos. Por isso, não nos espantemos: uma gangue de apedrejadores pode ir de terno para o sacrifício, e outra pode ir em farrapos. O que vão fazer, porém, é a mesmíssima coisa.