Parece que o judeu é a vítima arbitrária por excelência — o que é demonstrado, insisto, pelo fato de que toda pessoa que quer assumir o papel de vítima se compara aos judeus, como que para pegar um pouco de seu “prestígio”. A idéia de que “os judeus mataram Cristo”, usada na Idade Média e até alguns séculos depois para justificar a perseguição aos judeus, é um belo exemplo de como o mecanismo do bode expiatório consegue seqüestrar qualquer coisa, inclusive a mensagem que o denuncia, inserindo uma parcialidade criminosa — ou mítica — no olhar. Só é aceitável dizer que os judeus mataram Cristo se recordarmos imediatamente que os judeus também ajudaram Cristo a carregar a cruz, que os judeus defenderam Cristo, que os judeus espalharam a mensagem de Cristo pelo mundo. Os “judeus” ali não são o povo judeu, mas nós todos: não são eles, os linchadores; somos nós, os linchadores. Essa visão devidamente completa, por sua vez, traria uma honestidade e uma complexidade redentoras: você, quem quer que seja, também fez o mal, também matou Cristo, mas não deixou de fazer o bem, de contribuir com sua obra.
No entanto, se ontem falei de como o nazismo pode ser o último grito da religião arcaica, hoje devo ressaltar um aspecto segundo o qual a perseguição aos judeus é moderníssima. Se a modernidade é a defesa das vítimas, a perseguição aos judeus dentro do próprio cristianismo foi a primeira perseguição “moderna”, isto é, justificada por um mito (o mito é sempre a versão do criminoso) moderno. Em vez de alegar a defesa do interesse nacional, como no caso de uma guerra, ou uma necessidade qualquer, alega-se um crime cometido no passado. “Perseguimos os judeus porque eles perseguiram Cristo primeiro”, o que é diferente de “entraremos em guerra com a Alemanha porque necessitamos da Alsácia-Lorena” ou “vamos dividir 40% do território paraguaio com a Argentina para manter certos interesses políticos e comerciais”. Isso é diferente também porque a perseguição aos judeus não assume a forma de uma guerra contra um povo estrangeiro, mas de uma perseguição dentro do território de um Estado (território esse estendido virtualmente pela guerra ou não). Essa estrutura anuncia as perseguições — decerto infinitamente mais brandas — politicamente corretas, isto é, aquelas que se justificam por uma opressão cometida primariamente no passado, seja ela real e terrível, como a escravidão, ou um tanto psicológica, como “o domínio do patriarcado”.
A passagem, digamos, do “espírito arcaico” para o “espírito moderno” está na persuasividade do mito. O mito anterior encobria a violência. As guerras falam em interesses nacionais. A perseguição contemporânea é justificada desde o ponto de vista de um direito de vingança adquirido pela vítima — direito de vingança que, é claro, é “justiça”. O nazismo combina os dois elementos: de um lado, um mecanismo claramente arbitrário de seleção das vítimas, e por isso tosco e repulsivo aos olhos modernos; de outro, o aproveitamento do povo que primeiro sofreu a violência em nome de um suposto direito das vítimas à revanche.