Não é possível não recomendar enfaticamente a leitura da entrevista que o Times de Londres fez com um dos três assassinos de Ceausescu (pronuncia-se “Tcháuchescu”), ditador romeno de 1974 a 1989. Ceausescu foi morto a tiros ao lado de sua esposa há exatamente 20 anos.
Todos os fundamentos da cultura propostos por René Girard, bem como sua denúncia pelo Cristianismo, estão no texto, esquematicamente. Primeiro, a rivalidade espalhada pelo país. Segundo, o grupo de pessoas que se une para praticar uma violência em nome de todas as outras pessoas — a violência unânime que é o fundamento mesmo das identidades, e que acaba com as rivalidades, porque é praticada por todos contra um, seja esse “um” apenas um indivíduo, um pequeno grupo, ou um grande grupo abstrato, como o exército inimigo. O resultado tem de ser um distanciamento: eles, vencidos e malvados, estão lá, e nós, vencedores e bonzinhos, estamos aqui.
O julgamento farsesco de Ceausescu corresponde ao mito. Todos os males da Romênia são atribuídos a ele. A própria esposa dele se espanta com o fato de que chamam a morte de 34 pessoas de “genocídio”. Pode ser um massacre, e ninguém está defendendo o ato, mas que a linguagem está sendo abusada, está. Agora, o julgamento farsesco já é um mito extremamente moderno. Os responsáveis sabem que não podem ser considerados linchadores, ou sua violência seria deslegitimada, isto é, não seria unânime. Por isso um julgamento, que é a forma moderna de lavar as mãos da violência a ser aplicada. Agora, se o julgamento fosse sério, provavelmente Ceausescu seria culpado de muitas coisas, mas não de todo o mal do universo. Mesmo nos julgamentos de Nuremberg, até onde sei, ninguém foi levado às pressas para o pelotão de fuzilamento.
O que é mais especificamente moderno é o seguinte: há alguns séculos, teríamos acreditado nessa violência, e entendido que, após nos livrarmos do rei malvado, ou de termos enforcado o último burocrata com as tripas do último comissário do povo, poderíamos viver em paz e seguir nossas vidas de lindeza e amor. Na verdade, alguns de nós ainda acreditamos; tenho certeza de que entre os leitores há aqueles meio escandalizados porque até agora eu não falei que o ditador comunista era o Darth Vader e merecia até uma torturazinha só para ver o que é bom, como se os torturados da Romênia não merecessem a sua vingança.
Não, hoje nós percebemos que a violência é apenas a violência. O homem que matou Ceausescu poderia, em tempos antigos, ser considerado um herói. Hoje ele mesmo vem a público dizer: “Ceausescu pode ter sido mau, mas nós agimos como uma turba ensandecida e assassina”. Essa violência não pode mais fundar a cultura.
É inevitável, também, que a desmistificação continue. Mais e mais estudos mostrarão que o que houve no dia 25 de dezembro em Bucareste foi uma carnificina. Mais e mais pessoas, devidamente ponderadas, recordarão que Ceausescu também não era um anjinho e isso impedirá que sua figura volte, como se ele fosse um salvador. O assassino de Ceausescu, que hoje diz seguir a Bíblia, não se alegra na noite de Natal, porque nessa noite ele se lembra de que cometeu um assassinato. É Cristo quem denuncia sua violência: assim como a turba se uniu para pedir o assassinato de um homem indefeso, também ele agiu em nome da turba.
Essa é a modernidade. Sabemos que o comunismo não foi varrido da Romênia pelas forças do Bem. Nem mesmo um dos homens mais importantes na abolição do comunismo acredita nisso. O assassino sabe que é assassino. Em Júlio César, Bruto diz a Cássio: “sejamos sacrificadores, não açougueiros”, “dirão que fomos expurgadores, não assassinos”. Aqueles que mataram Ceausescu gostariam que acreditássemos nisso, mas não conseguimos, nem conseguiremos, e nem mesmo eles conseguem continuar acreditando.
Esse é o efeito apocalíptico do Natal. Após Cristo, não podemos mais inventar mitos, nem acreditar na violência.
Temo que o que disse acima soe um pouco denso demais. Para quem quiser se aprofundar, alguns textos já citados aqui:
Are the Gospels Mythical?, de René Girard.
On War and Apocalypse, de René Girard.
Two Songs from a Play, de W. B. Yeats.