Desde que eu era criança, uma coisa me chamava a atenção na narrativa do nascimento de Jesus: que os anjos dissessem, em Lucas, 2, 14, “glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. Por que paz somente a uma parte dos homens, e não a todos? Por que os anjos dariam tanto valor assim à boa vontade?
Seria possível fazer uma excavação metafísica ou esotérica da linguagem, ou uma especulação filológica, comparando os diversos usos da expressão. Porém, ainda que haja debate sobre essa tradução desse versículo (do lado dessa tradução que uso, temos a Vulgata, o Pe. Matos e João Ferreira de Almeida), vou ficar com ela, e vou considerá-la apenas em português. Que é a boa vontade de que os anjos falam?
A boa vontade me parece algo que está um pouco abaixo da caridade e que, no entanto, é o começo desta. Se os homens tivessem a caridade, seriam santos; ter boa vontade, tentar manter a boa vontade, é como que estar à procura da caridade, o que, considerando a provisoriedade da vida humana, o fato de que vivemos no tempo cronológico, é uma posição razoável.
Como reconhecer a boa vontade? Se ela for mesmo uma espécie de primeiro grau da caridade, podemos dizer que ela se caracteriza por uma abstenção do linchamento em todas as suas formas, isto é, por um desejo de não sujar as próprias mãos de sangue. O linchamento pode ser físico, como no caso da mulher adúltera. Jesus perguntou à multidão quem poderia atirar a primeira pedra, e todos desistiram. Se tivessem boa vontade, não estariam prontos a matar uma pessoa inocente e indefesa. Não preciso discursar contra a lapidação, mas não custa observar que, por sua vez, o simples falar mal de um ausente equivale a essa violência coletiva.
Gostamos da violência porque precisamos de auto-afirmação, e, em nossa sociedade incruenta, o linchamento moral é mais comum. Quando me junto com meu amigo para falar mal dos esquerdistas (ausentes da conversa, e por isso tão indefesos quanto a mulher adúltera) que poluem o Brasil, estou afirmando minha identidade de puro liberal. Posso acusá-lo e estar certo. Isso não muda a natureza da minha motivação. O diabo também acusa com a verdade. Também posso ficar reclamando desse mundo mau, sentindo-me uma alma pura e sublime, enquanto os outros são maus, capitalistas, socialistas, gananciosos, luxuriantes, fracos, feios, ridículos, de mau gosto, e querer me alimentar do grande orgulho de me achar melhor do que os meus inimigos. Tudo o que penso deles talvez seja verdade. Mas se eu acusá-los, estarei fazendo papel de diabo, enquanto me acho o anjo vingador, e não poderei resistir quando alguém me dirigir uma acusação semelhante.
Outra maneira de demonstrar a falta de boa vontade está na irreverência. Não acho que esta deva ser confundida com a ironia. Como definiu Roger Scruton, a ironia é um enxergar-se a si mesmo na terceira pessoa e saber rir da própria situação, o que pode (não necessariamente vai; mas isso é outro assunto) ser um bom remédio contra os desejos de super-humanidade e auto-afirmação competitiva. A irreverência de que falo é justamente um pressupor-se superior a tudo, um dar-se ao luxo de reduzir qualquer coisa à sua caricatura projetada. O fundamento dela é a mesma paranóia de sempre: vejam como eles são maus e eu sou bom.
A boa vontade, então, é um misto de verdadeira humildade com o desejo de ver o bem e pressupor o bem. Se os anjos desejam paz aos homens de boa vontade, e não a todos os homens, bem quando Cristo nasceu, então de certo modo Cristo nasceu para estes homens e não para todos. O que, é claro, não significa que não se possa passar a ser um homem de boa vontade; basta querer abdicar da auto-afirmação competitiva.
Cristo nasceu, então, para aqueles que desejam depor as armas e se aproximar da manjedoura com boa vontade. Depor as armas inclui a dolorosa parte de abdicar do próprio desejo de afirmar-se. Agora chega a parte de falar em como a recompensa por isso é grande. Mas é óbvio que é. Mesmo que você seja ateu, e queira reduzir tudo a um componente antropológico, pode perceber até no mercado as vantagens de se reduzir a competitividade violenta, quando um povo aceita especializar-se num trabalho e depender de outro. E, se você não é, sabe do que estou falando. Podemos retirar da alma o escárnio e trocá-la por uma ironia curativa. Em vez de produzir a catarse — a expulsão, o banimento, o linchamento físico ou moral — dos inimigos para seguir afirmando nossa pequenez, como se ela fosse maior que a pequenez alheia, podemos produzir a catarse no sentido da purificação de nós mesmos, sabendo que o olhar com que nos olhamos, e com que os outros a quem chamamos de irmãos nos olham, não é de acusação. Podemos depor as armas, porque não é mais preciso ter medo, e isso se deve apenas à boa vontade. Teremos paz se tivermos boa vontade, e teremos muito mais, se também formos a Belém.
Feliz Natal a todos.