Publicado originalmente em OrdemLivre.org.
Há no filme Tropa de elite um breve momento em que o Capitão Nascimento denuncia um aspecto muito forte da cultura brasileira. Ele, truculento, que nunca ouviu falar que os fins não justificam os meios, quando vai elogiar Neto, na etapa final de seu aprendizado, diz que suas manobras estão “padrão, padrão”.
É um contraste excelente. Não se questiona o treinamento do BOPE do filme; também não se questiona que achincalhar a vida dos moradores da favela e “botar na conta do Papa” um bandido está longe de ser o que se esperaria de um padrão de conduta. O Capitão Nascimento domina as técnicas em proveito próprio; ele as domina em seu mais alto padrão, para poder ignorar um padrão moral. Mas o elogio máximo que sai da sua boca é esse: “padrão”.
Não é difícil ver as vantagens de dominar o “padrão”. O filme mostra os alunos da PUC e, como eu mesmo estudei lá, sei que aquilo poderia ser um documentário, um reality show, e a verdade é que aqueles alunos são indiferenciados, seguidores cegos de modinhas intelectuais esquerdistas. O outro meio, o da polícia, é igualmente indiferenciado: são todos corruptos, mesquinhos e ridículos. Quem tem o domínio da realidade é o Capitão Nascimento. Tem o domínio das ações e é o único personagem que questiona os próprios atos. Os outros vivem segundo padrões; já ele domina o padrão e ensina o padrão: ou você o domina, ou vive dominado e cai na indiferenciação. Quem não passa no treinamento do BOPE volta para o mundo idiota da polícia comum. O filme repete assim a mesma estrutura de quase todas as conversas: quando nos reunimos para falar dos outros, eles são escravos de algum padrão, enquanto nós dominamos esse padrão. Até o debatemos, veja só!
Isso lembra muito Nelson Rodrigues. Seus personagens estão sempre transformando em fetiche algum aspecto institucional, “padrão”. Em Toda nudez será castigada, o filho quer quer o pai não se case de novo, e fique para sempre fiel à mãe. Em O beijo no asfalto, Arandir, casadíssimo e heterossexual, fetichiza a idéia de que não se deve negar nada a um moribundo, e dá um beijo na boca de um homem atropelado por um bonde. É possível dizer que essas foram apenas fachadas para as verdadeiras motivações dos personagens, mas essas foram as justificações que eles deram a eles mesmos — exatamente como, em A serpente, uma mulher fetichiza a idéia de felicidade conjugal a ponto de oferecer os préstimos do excelente marido à própria irmã.
Seria fácil dizer que essas obras são pueris e refletem um horror à complexidade. Mas elas são fruto de outra experiência. Elas refletem uma tentativa desesperada e, sob certo aspecto, um pouco desajeitada, de rejeitar a ambiguidade do cotidiano brasileiro. O filho não quer que o pai se case de novo porque o brasileiro, sem a firmeza da instituição do casamento (e olha que na época em que Nelson Rodrigues escreveu isso as coisas eram muito diferentes), não consegue definir seus relacionamentos, ficando assim sem saber definir sua identidade. Arandir se surpreende por, no meio do século XX, ser chamado de gay por beijar na boca um homem caído no meio da rua. A irmã entrega o marido à irmã. Esses personagens estão gritando: qual é o padrão? Qual é a regra?
Agora, O Capitão Nascimento atira em quem ele quiser, mas elogia a destreza do aprendiz chamando-a de “padrão”. No universo dele, o padrão é uma técnica. Só existe indiferenciação e vingança; não existe uma administração institucional, padrão, da justiça, uma regra que controle a violência. O Capitão Nascimento se agarra às técnicas do BOPE como os personagens de Nelson Rodrigues se agarram às suas regras fetichizadas, descontextualizadas. Claro que nenhum deles será salvo.
Essa é a experiência brasileira. Olhamos o caos. Não há punição institucional para a transgressão; só há a violência retributiva entre policiais e bandidos, e a violência aleatória contra as pessoas de bem. Em todas as classes sociais, diversas pessoas clamam, ressentidas, pela presença do Estado, e esse ressentimento nos vai envenenando a alma. Não queremos desejar uma vingança generalizada contra aqueles que imaginamos ser os malfeitores, não queremos linchar o bode expiatório; queremos só as regras que permitem a vida pacífica e a cooperação. E é por causa desse ressentimento misturado a desejo que os dramaturgos brasileiros produzem esses personagens que sonham, ou deliram, com um “padrão”.