Tenho dedicado boa parte do meu tempo livre a ler a respeito do levantamento das excomunhões dos quatro bispos sagrados por Monsenhor Lefèbvre e Dom Antônio de Castro Mayer. Essa leitura traz de volta diversas questões. Nenhuma delas teológica ou canônica, para ser sincero.
Denomino-me um “filotradicionalista”. Gosto da missa antiga e ficaria felicíssimo por não ter de sair do Rio e ir até Niterói para assisti-la. A missa nova é válida; até o Monsenhor Lefèbvre o admitiu. O problema é o que pode surgir em torno dela: desde aberrações estéticas a questões doutrinais. Por isso não é incomum que os católicos procurem assistir à missa onde haja menos ofensa. Um lugar onde se pode assistir à missa com tranqüilidade ainda é o Mosteiro de São Bento, ao menos aqui no Rio.
Agora, se hoje me denomino antes “filotradicionalista” do que “tradicionalista”, é justamente para não ser tomado por “lefèbvrista”. Não haveria nenhum problema com o termo “tradicionalista”, já que religião é tradição e conservação. Mas há um clima no mundo “tradicionalista” que me parece um tanto negativo.
W. H. Auden escreveu em algum lugar que “resenhar livros ruins com freqüência faz mal ao caráter”. Isso porque a postura do acusador não pode ser adotada com freqüência. O acusador por excelência é o diabo. Apontar o dedo ininterruptamente para as pessoas, tendo ou não razão, só cria identificação com o inimigo do homem. Passar décadas reagindo ao Concílio Vaticano II, criticando a Santa Sé, também.
Em meus dias de tradicionalismo mais radical recebi duas correspondências que muito me marcaram. Não consigo lembrar o nome dos remetentes; sei que uma pessoa era um padre da Bahia que estava na Itália e outra pessoa era, acho, um membro carioca da (do) Opus Dei. O primeiro falava do “martírio moral” de assistir a missas com guitarras; o segundo pedia que eu tirasse do ar as fotos em que os Papas Paulo VI e João Paulo II faziam, digamos, coisas de gosto duvidoso como vestir um cocar, e este pedido vinha em nome de um sentimento filial.
Depois eu me lembrei de já ter ouvido um de meus professores, feroz crítico da Igreja Católica, reclamar que a Igreja teria abdicado de seu papel de ensinar, sugerindo que por isso merecia ser jogada para escanteio. Sua frase exata foi: “A Igreja não é “mãe e mestra”? Tem de ensinar!” (A referência é à encíclica Mater et Magistra, de João XXIII. Pensei muito nisso e respondi, para mim mesmo, muito depois: “Mas se ela é mãe você também não a chuta em público, não a abandona. Se a mãe e mestra não cuida nem ensina, isso não quer dizer que o aluno, a menos que queira admitir que não passa de um moleque malcriado, possa fazer qualquer coisa”. E eu nem acho (hoje) que a Igreja tenha abdicado desse papel duplo. Só quero dizer que, mesmo que eu achasse, isso não me daria o direito de fazer o que já fiz.
O que eu vejo é o Vaticano estender sempre a mão. O Papa levanta as excomunhões e fica sozinho. Os tradicionalistas o olham com suspeita por isso; e antes se ressentiam de Roma por não fazer isso. Com todo o respeito, é muito difícil não pensar em um filho adolescente em crise de identidade: qualquer coisa que os pais fizerem será ruim. Eu aprendi com Roma e com meus pais, olhando o que já fiz e o que eles toleraram, o que são o amor infinito e a paciência caridosa. Isso não significa que eu entenda ou que aprove 100% do que eles fazem. Deus do céu, tenho 31 anos, não sou uma criança. Mas isso não significa que eu não deva tentar retribuir esse amor infinito e essa paciência caridosa. No caso da Igreja, admito que, se fosse para fazer as coisas do meu jeito, eu soltaria um listão de excomunhões, começando por Frei Betto. No entanto, essa minha postura é irrelevante. Se o Papa não faz isso, deve ter lá suas razões. Pensar assim não é nem uma questão de humildade fingida. Mesmo de um ponto de vista mais frio, é só levantar a seguinte questão: se eu já li os livros de Ratzinger, como já li, como é que posso pretender ensinar a ele o que fazer com a Igreja?
Por isso, para além da própria questão dos papéis de Papa e fiel, pai e filho, não vejo literalmente ninguém, entre todos os que criticam o Papa, direta ou veladamente, sequer chegarem perto de seu conhecimento, sua mansidão, sua caridade, seu realismo. Estou juntando qualidades pessoais porque de nada adianta afirmar ter razão e ainda assim parecer um maluco reprimido com raiva do universo. Francamente, se o custo de estar certo é ser uma aberração, não se pode dizer que não há razão para se perguntar se isso vale mesmo a pena e condenar as pessoas que rejeitam os Grandes Bastiões da Verdade. Só que esse custo não existe; é uma ilusão criada pelos inimigos de Bento XVI, que forjam sua própria identidade pela contrariedade à Santa Sé. Se eu posso humildemente propor uma explicação para o mal do ambiente tradicionalista, baseado no mal que já observei em mim mesmo, ela é uma espécie de abstracionismo, confundindo proposições com pessoas, atribuindo má intenção a qualquer ambigüidade possível – uma atitude completamente contrária à de Bento XVI quando diz, por exemplo, que o Concílio Vaticano II deve ser interpretado à luz da tradição.
Sinceramente, espero que os lefèbvristas possam voltar à comunhão plena com Roma, e que retribuam a boa vontade do Papa. Precisamos de suas liturgias e da grande piedade de muitos deles, que já tive a honra de conhecer. Mas não precisamos de uma multidão de Freis Bettos de direita, de novos acusadores que esnobam a Santa Sé. O ideal seria que tudo pudesse ser feito com o espírito do possível retorno da Traditional Anglican Communion à Igreja Católica.
Para acompanhar as repercussões do levantamento das excomunhões, vale a pena ler o blog Fratres in Unum e, é claro, Sandro Magister. É impressionante como tudo o que sai na imprensa brasileira sobre a Igreja varia entre o preconceituoso e o simplesmente errado.
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