Chesterton, esse grande liberal

Essa é uma tradução minha de um trechinho do quarto capítulo de Orthodoxy, de G. K. Chesterton; usei o original, em versão gratuita.

Mas você também pode comprar o livro inteiro em português.

… O que eu perdi foi minha fé infantil na política prática. Continuo igualmente preocupado com a batalha do fim do mundo, mas não estou tão preocupado com as eleições gerais. (…) Igualmente, e mais do que nunca, acredito no liberalismo.

Tomo esse exemplo de uma das fés duradouras porque, tendo agora de esboçar as origens da minha especulação pessoal, talvez essa seja, creio, a minha única inclinação positiva. Fui criado como liberal, e sempre acreditei na democracia, na doutrina liberal elementar de uma humanidade que governasse a si própria. Se essas palavras parecem vagas ou desgastadas, só me resta parar um momento para explicar que o princípio da democracia, no sentido a que me refiro, pode ser resumido em duas proposições. A primeira é: as coisas comuns a todos os homens são mais importantes do que as coisas peculiares a um dado homem. As coisas ordinárias valem mais do que as extraordinárias; não, elas são mais extraordinárias. O homem é algo mais prodigioso do que os homens; algo mais estranho. A percepção do milagre da própria humanidade sempre deveria ser mais vívida que quaisquer portentos do poder, do intelecto, da arte ou da civilização.

O simples homem de duas pernas, enquanto tal, deveria ser sentido como algo mais emocionante que qualquer música e mais inquietante que qualquer caricatura. A morte é mais trágica até mesmo que a morte pela fome*. Ter um nariz é mais cômico até mesmo do que ter um nariz normando. Este é o primeiro princípio da democracia: que as coisas essenciais dos homens são aquelas que eles têm em comum, não aquelas que eles têm em separado. E o segundo princípio nada mais é do que este: que o instinto ou desejo político é uma dessas coisas que eles têm em comum. Apaixonar-se é muito mais poético do que precipitar-se na poesia. A tese democrática é que o governo (a ajuda no administração da tribo) é uma coisa semelhante a apaixonar-se, não a precipitar-se na poesia. Não se trata de uma coisa análoga a tocar o órgão da igreja, pintar pergaminhos, descobrir o Pólo Norte (hábito traiçoeiro), dar um salto mortal para trás, ser Astrônomo Real etc. Porque não esperamos que um homem faça essas coisas a menos que as faça bem. Ao invés disso, trata-se de uma coisa análoga a escrever as próprias cartas de amor ou assoar o próprio nariz. Esperamos que um homem faça essas coisas sozinho, mesmo que as faça mal. Não estou defendendo aqui a veracidade de nenhuma dessas idéias; sei que alguns modernos estão pedindo que os cientistas escolham suas esposas, e talvez logo venham a pedir, me parece, que enfermeiras assoem seus narizes. Estou só dizendo que a humanidade reconhece essas funções humanas fundamentais, e que a democracia coloca o governo entre elas. Eis, em suma, a fé democrática: que as coisas mais tremendamente importantes devem ser deixadas aos próprios homens comuns – o acasalamento dos sexos, a criação dos jovens, as leis do estado. Isso é a democracia; e nisso eu sempre acreditei.

Mas há uma coisa que desde a minha juventude não consigo entender. Nunca consegui entender de onde as pessoas tiraram a idéia de que a democracia de algum modo se opõe à tradição. É óbvio que a tradição não passa da democracia estendida no tempo.

*Chesterton gosta de arcaísmos; assim como anteriormente seu “awful” não significa ruim, mas “algo que inspira terror e maravilha” (awe + full), “death by starvation” poderia significar também a morte pelo… frio.

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