Soneto 41: a bissexualidade em Shakespeare

William Shakespeare, trad. Vasco Graça Moura. Soneto 41. Os sonetos completos. Landmark: São Paulo, 2005.)

Brandas maldades que a liberdade faz,
se estou por vezes longe do teu peito,
diz com beleza e anos, e onde estás
a tentação te segue nesse efeito.
És gentil e te assalta quem puder,
e belo és e ganham-te em disputa;
se a mulher quer, que filho de mulher
cruel a deixa, sem vencer a luta?
Ah, mas bem podias respeitar-me a casa
e censurar-te a juventude errante,
tumulto que te leva onde se arrasa
dupla fidelidade num instante:
     dela, porque a beleza em ti a atrai,
     tua, porque a beleza em ti me trai.

Depois do soneto 29, mais de um leitor desse blog me procurou para perguntar se eu “achava mesmo que havia bissexualidade nos sonetos de Shakespeare”. Entendo que a idéia de gostar muito de algo que seja considerado “de boiola” pode ser bastante desconfortável. Abandonar a obra de Shakespeare ou negar o óbvio? Nem um, nem outro.

Mas, antes de continuar, quero dizer que tantos sonetos dedicados a um homem – chamando-o de bonito e mais… – deveriam por si ser evidência suficiente. Ainda há as insinuações nas peças. Mas trato disso daqui a pouco. Só quero dizer que acho fantástico que as pessoas possam defender teses que dependem de pistas aqui e ali – Shakespeare era católico; era defensor da “tradição primordial”; era gnóstico; era Francis Bacon; era várias pessoas – e fiquem tão desconfortáveis com a bissexualidade presente em suas obras que prefiram fingir que ela não existe, ou é outra coisa.

Não acho que o homossexualismo seja uma espécie de “doutrina secreta” das obras de Shakespeare, nem que ele tenha feito peças e sonetos apenas para dizer para os entendidos que ser gay é que é legal. Essa é a análise tacanha de quem também precisa dizer que todos os grandes artistas eram gays – ou católicos, ou “gente à frente do seu tempo”, ou “críticos da sociedade”, ou . Isso acontece em todos os grupos que se sentem marginalizados. Lembro que uma vez peguei um livro de uma famosa astróloga brasileira que começava com uma imensa lista de gente importante que teria praticado a astrologia, entre as quais estava até São Tomás de Aquino – que só se interessou pontual e filosoficamente sobre o que hoje chamamos de astrologia e escreveu mais sobre física e cosmologia.

Enfim. O que acho é que Shakespeare estava sobretudo brincando com duas coisas.

Primeiro, com o fato de só homens poderem atuar nos palcos elizabetanos, e isso por si já seria uma boa explicação de por que, tantas vezes, em tantas peças, um ator homem atua como personagem mulher que, por sua vez, se traveste de homem. Sem contar que a própria convenção elizabetana já faz de qualquer cena de amor entre personagens heterossexuais uma insinuação de homossexualismo. No filme Stage Beauty, que trata da – digamos – ascensão das mulheres ao palco, o rei Carlos I diz-se a favor delas e lembra o que os padres da época nunca gostaram desse negócio de homem ficar fazendo papel de mulher… E claro que toda essa ambigüidade nas identidades só aumentava o humor involuntário; nada melhor para o dramaturgo do que usá-lo a seu favor.

Segundo, Shakespeare brincava com a própria estrutura triangular do desejo. Sim, sim, René Girard de novo. Quando falei do soneto 29, disse que ele manifestava o desejo de dizer aos outros que era melhor ter aquele amor do que qualquer coisa, inclusive ser rei. O soneto 29 é uma versão sofisticada do kiss and tell, beijar e contar para todo mundo. Freqüentemente um homem deseja uma mulher porque ela é desejada por outros. Talvez os homens não estejam dispostos a admitir isso, mas as mulheres certamente admitirão que qualquer homem manifestamente desejado por outras mulheres fica mais atraente. A posse de qualquer objeto desejado – sobretudo de um objeto único e irreproduzível; ter uma mulher não é o mesmo que ter um carro que seu vizinho pode comprar – também significa a vitória sobre o rival. Um rival que só é rival por desejar o mesmo desejo que você… Ou seja, alguém que é o mesmo que você sob o aspecto do desejo. E quanto mais intenso fica o desejo, mais os rivais se parecem.

Ok, nesse momento você vai parar e dizer que não, que estou errado, que estou abusando, que você não tem nenhuma competitividade mimética e deseja os objetos só por eles mesmos. Deve ser por isso que você conta para todo mundo no seu blog quais são as coisas que você possui – inclusive as experiências por que você passou, e como elas foram únicas e intensas. Deve ser por isso que você nunca teve aquela sensação de onipotência quando possuiu algum objeto valorizado por outros. Mas certamente é por isso que você nunca admitiu que, ao perder esse objeto – sobretudo no caso de uma pessoa amada – você sentiu mais falta da sensação de onipotência do que de qualquer outra coisa…

(Daí a grande bobagem da oposição entre “ter” e “ser”, porque o verdadeiro objetivo de ter é ser. Claro que isso não se refere às necessidades ou óbvias conveniências. Ter uma casa pode ser necessário, mas qual casa? Aí entra o desejo. Se você pode escolher, você escolhe em função da pessoa que quer ser e da imagem que quer projetar.)

Em Shakespeare – atenção, ativistas gays, eu falei em Shakespeare – o desejo ou a tensão homossexual nasce dessa rivalidade, e essa rivalidade nasce de estarmos mais apaixonados por nós mesmos e pela idéia de amor do que por outra pessoa. Shakespeare está gozando da nossa cara: queremos fingir que nossos rivais são “aqueles outros”, gente absolutamente diferente, quando somos mais parecidos com eles do que pensamos, e eles conosco.

Chegando finalmente ao soneto, não dá para ter muitas dúvidas da presença da bissexualidade competitiva. Tanto o homem quanto a mulher são desejados; os dois estão traindo o poeta; é um triângulo que chega onde – até onde me lembro – Jules et Jim não ousou chegar. Se você ainda tem dúvidas, observe que Shakespeare diz que sabe que o amigo é jovem e bonito e será assediado, não que vai encarar o duro sofrimento moral de vê-lo com sua amada. Ele entende que a dupla infidelidade é inevitável, uma decorrência da tentação, e quase nem chega a reclamar. Tudo o que se disse até agora foi apenas para que o leitor se despisse dos petrarquismos pseudo-sublimes (Petrarca foi o primeiro nerd da história da poesia, endeusando mulheres intocáveis) que se costuma esperar dos poemas que vêm de autor famoso. Nada disso: Shakespeare está descrevendo o desejo e sua escravidão, e também, como disse Auden, a humilhação de sentir-se atraído por alguém que provoca repulsa.

Existem alguns comentários importantes sobre a tradução. Primeiro, “diz”, no terceiro verso é um uso verbal quase esquecido, ao menos cá no Brasil, que tem o sentido de “condiz”, “adéqua-se”. Vão ao dicionário para confirmar que não minto. Segundo, há uma disputa em torno de uma palavra do original inglês: o nono verso aparece em algumas edições como “Will sourly leave her till she have prevail’d?” e em outras o pronome “she” vira “he”. Isso, é claro, lança disputas sobre quem “vence a luta”, o homem ou a mulher. O bom Vasco Graça Moura preferiu deixar a ambigüidade na tradução, mas o texto em inglês na edição bilíngüe traz “he”. Desde o elevado pedestal de minha prodigiosa ignorância filológica, voto em “she” porque me parece fazer mais sentido. Shakespeare reafirmaria que basta a mulher querer para o homem ceder; além disso, como foi ela que iniciou a ação de cortejar – “woo” no original, “when woman woos”, ela é que pode ou não “prevail”. Claro que a tradução, com sua “luta”, dá uma certa masculinizada, mas ainda assim há ambigüidade.

Vejam que distância daquele catarismo medieval…

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