Deixar e deixar você


Deixar e deixar você
“Leaving and Leaving You”. Sophie Hannah. Trad. Pedro Sette Câmara

Quando eu deixar seu CEP e seu ponto de trem,
quando eu deixar o que planejamos fazer,
talvez você ache que foi deixado também,
mas deixar é uma coisa, outra é deixar você.

Quando eu deixar seu clube e a sua cidade,
quando eu partir sem muito choro ou cicatriz,
lembre: uma coisa é maldade, e outra é maldade
com você, que jamais farei e ainda não fiz,

e, quando eu me for, lembre que, ao pesar
tudo – o amor, o aluguel mais barato – , você
foi todos os porquês eu me dei pra ficar –
mas, para partir, você não foi meu porquê.

E mesmo deixando sua vista e lugar,
e que o nosso fim venha logo a ser um fato,
mesmo que você fique no que vou deixar,
não deixo você, não se a causa leva ao ato.

Preciso começar defendendo a minha tradução, que pode causar algum estranhamento no primeiro e no último verso. Sei perfeitamente que quase não se diz “ponto de trem” em português (considerando a amostragem do Google), mas a “commuting station” do original só faz sentido numa região onde as pessoas pegam e trocam de trens com freqüência. No Brasil, nem chamamos o metrô de trem, apesar de ele ser um trem; e “pegar o trem”, ao menos aqui no Rio, significa transitar entre a Estação Central do Brasil e algum lugar na Baixada Fluminense. “Ponto de trem”, além de rimar, caber na métrica e soar bem, consegue comunicar a idéia central (a personagem que fala o poema e o personagem a quem ela se dirige não estarão mais fisicamente próximos) e deslocalizar a situação, que fica nem especificamente inglesa nem especificamente brasileira. Dito isso, sei que no verso final do original diz-se “motive”, e julguei que – além da conveniência sonora etc – a palavra “causa” trazia os mesmos ecos jurídicos e generalizantes do original, o que me foi confirmado pelo dicionário Houaiss. Um leitor anglo pode estar mais familiarizado com as acepções da palavra “motive” por assistir a muitos filmes e séries de advogados, o que não acontece ao menos no Brasil – a nossa linguagem acaba muito mais influenciada pelas legendas e dublagens desses mesmos filmes e séries do que por qualquer produção que leve em conta o sistema brasileiro.

Também é verdade que o poema original tem dez sílabas, mas preferi traduzi-lo em doze; simplesmente me pareceu que era possível manter mais da coloquialidade com um metro mais flexível, e também que isso era mais importante para este poema do que conseguir comprimir todos os significados e deixar o resultado final um pouco duro.

Defendida a tradução, digo que gostei desse poema assim que o li pela primeira vez, e que me impressiona a quase ausência de uma produção equivalente em português: formalmente rigorosa, com conteúdo leve mas não metalingüístico, buscando o contato direto com o leitor e tentando servir como objeto imediatamente utilizável. Esse poema, afinal, contém um discurso contemporaneamente plausível; ele se parece com as razões que uma mulher alegaria para terminar um relacionamento e ir embora.

Mas podemos nos perguntar o que de fato ela está dizendo. Eu acho que o poema tem uma ambigüidade interessante: pode ser entendido diretamente como a fala de alguém que confessa a importância do outro mas precisa partir por alguma razão, ou como uma fala oblíqua, um discurso consolador e polido que mascara o simples desejo de se relacionar com outros homens. Não acho que devamos sempre ler as coisas da maneira mais maliciosa, e até admito que, neste caso, é preciso trazer um elemento de fora do texto para apoiar essa segunda interpretação – ou seja, se essa opção aparecesse na múltipla escolha do vestibular, não seria boa idéia marcá-la. No entanto, se eu fosse professor, estaria disposto a aceitá-la numa resposta discursiva, porque é escandaloso que se pretenda isolar a literatura da experiência, como se as obras não tivessem o direito de, na frase de Samuel Johnson que Auden citou em uma entrevista sem dar a referência, “ajudar o leitor a suportar ou aproveitar melhor a vida”.

Essa ajuda vem pelo poder descritivo da linguagem. Podendo enunciar para nós mesmos as situações que testemunhamos ou vivemos, damos a elas uma forma sobre a qual podemos raciocinar. Essa passagem do inominado para o nomeado é como a quebra de um tabu, o rompimento de um interdito arbitrário que nos impedia de reconhecer nossa circunstância. Uma poesia ligeira voltada para essa descrição, despida de pretensiosidades, não apenas teria grande valor em si mesma como faria um excelente meio de campo para a poesia “difícil”. Só que 99% da poesia contemporânea brasileira acaba sendo “difícil” por causa da pressão pela originalidade e pela manifestação da subjetividade, isto é, pela “reinvenção da linguagem” e pelo umbiguismo. O desafio da literatura está naquilo que se consegue fazer com esta linguagem que é dada e que é comum a autor e leitor, não naquilo que se finge fazer ao tentar “reinventar” a linguagem. Um pano virado do avesso não vira uma roupa – está só virado do avesso.

E nem se pode recriminar o público por não se interessar por algo que não lhe diga nada. Essa semana eu repetia a um amigo: “Sempre que vejo um escritor dizer que fez sua obra para si próprio, não sei por que ele se espanta de ninguém querer comprá-la.” Em vez de apenas querer o novo pelo novo ou a arte pela arte, ou mostrar como é diferente, o poeta que escrever para o público lançando mão dos recursos já conhecidos tem chances muito maiores de produzir algo interessante, o que não tem nada a ver com a busca de uma certa “leveza” ou fazer uma concessão magnânima ao mínimo denominador comum.

Além do exemplo que já dei de Bruno Tolentino, vale recordar o Paulo Henriques Britto.

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