William Shakespeare, trad. Vasco Graça Moura. Soneto 29. Os sonetos completos. Landmark: São Paulo, 2005.)
De mal com os humanos e a Fortuna,
choro sozinho o meu banido estado.
Meu vão clamor o céu surdo importuna
e olhando para mim maldigo o fado.
A querer ser mais rico em esperança,
como outros ter amigos e talento,
invejando arte de um, doutro a pujança,
do que mais gosto menos me contento.
Se assim medito e quase me abomino,
penso feliz em ti e meus pesares
(qual cotovia em vôo matutino
deixando a terra) então cantam nos ares.
Tão rico me é teu doce amor lembrado,
que nem com reis trocava meu estado.
Este é um dos mais famosos sonetos de Shakespeare, e esta é sua melhor tradução portuguesa – o Vasco Graça Moura certamente veio desbancar o volume do Jorge Wanderley com os sonetos completos (encontrável hoje só em sebo e só com sorte). Sei que VGM já apareceu mais de uma vez por aqui – mas não escolher o melhor só para não repetir seria estúpido. E eu também tenho direito às minhas obsessões.
Os sonetos de Shakespeare contam ou sugerem a historinha do autor com seu mais que amigo outro poeta e a dark lady, epíteto que tenho vontade de traduzir como “senhora preta” por causa da deliciosa tradução que VGM dá ao dístico final do soneto 132:
Jurarei que a beleza é pretidão
e feia a tez que falhe esse padrão.
Digo deliciosa porque há uma referência óbvia na palavra “pretidão”, que não pode ter escapado a um poeta português como VGM. É a nossa Bárbara escrava, merecedora das Endechas de Camões:
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Mas a chance de que Bárbara fosse realmente da raça negra é bem maior do que a chance de que a “senhora preta” também o fosse.
Agora, é preciso dizer – porque nem sempre isso é dito – que os 126 primeiros sonetos são realmente destinados a um homem. Claro que se pode tirá-los de contexto e destiná-los a uma mulher. Recentemente vimos o Peter O’Toole recitando o famoso soneto 18, “Shall I compare thee to a summer’s day?” (“Que és um dia de verão não sei se diga”, segundo VGM), para uma loura no filme Vênus. Eu mesmo nunca pensei em homem nenhum quando algum desses sonetos me veio isolado à cabeça, mas o fato de eu não ser bissexual não é razão para varrer para debaixo do tapete o bissexualismo dos sonetos de Shakespeare.
E, para fazer um comentário à tradução, o original inglês deste soneto traz a palavra “state” (“estado” ou “condição”, no caso) em nada menos do que duas rimas. Isso significa que Shakespeare – a quem não vamos acusar de inabilidade – realmente quis repetir a palavra ao fim do verso. VGM mudou-a de lugar, e colocou um “pesares” no lugar de um “estado”, mas manteve a repetição.
Esse “estado”, por sua vez, é a chave do poema, e vou convidar o leitor a uma perspectiva inesperada. Um subgênero de “poema de amor” é a simples declaração de amor, em que o poeta declara a extensão e a natureza de seus sentimentos. A mensagem deste soneto parece clara: “meu amor por você é tão intenso que a mera lembrança sua me traz alento em todas as intempéries”. Verdade? Talvez.
Só que há outra verdade, que é dada por outra palavra chave: “outros”. Se fôssemos ainda fazer uma tradução literal do primeiro verso do poema, veríamos que o poeta está “em desgraça aos olhos dos homens”, isto é, dos outros. E o soneto é publicado para os outros. São esses outros que precisam saber que a lembrança daquela pessoa amada vale mais do que a boa vida dos reis. Podemos ler o poema pensando nas pessoas que, mesmo estando na pior, apegam-se a uma pequena coisa e com ela pretendem justificar-se e até afetar superioridade. É como numa das cenas do filme As invasões bárbaras: um grupo de amigos canadenses, já com mais de 60, começa a falar de todas as modas intelectuais que seguiram e fazem uma ressalva final: “Fomos comunistas, existencialistas, ecologistas… Mas nunca fomos ‘cretinistas’”. Sem nem entrar na questão de que é isso que eles sempre foram, a atitude é a mesma: “Sempre fui idiota, mas meu coração era puro. Todo mundo acha que estou mal, mas nunca estive tão bem.”
O que, é claro, pode ser verdade. Mas, se fosse mesmo, você faria tanta questão assim de se justificar perante os outros?
2 respostas para “Soneto 29, de Shakespeare”
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