Ontem, indo do metrô na Cinelândia à Sala Cecília Meireles ver o Alban Berg Quartett, com três amigos sem blog, vemos no chão da Rua do Passeio o que parece ser uma bala de fuzil.
Chegando à Sala, que ao menos estava cheia, observo o mesmo fenômeno de sempre: quase nenhum “jovem” (eu já tenho meus 31). Parece que em breve o público carioca de música erudita vai morrer. Nesta cidade, prevejo um futuro semelhante ao da poesia: assim como hoje apenas as pessoas que têm ambições literárias lêem versos, um dia só os estudiosos de música e instrumentistas irão a concertos. Só eu, que não sei a diferença entre um dó e um ré, continuarei sendo puro “público”, mero apreciador, o que dá até uma certa vontade de não aprender nada de música, só para manter essa condição.
Não se pode nem dizer que o problema é de dinheiro. A Sala Cecília Meireles é estatal, os preços dos ingressos são baixíssimos (ainda que, naturalmente, eu preferisse impostos baixíssimos e ingressos altos – assim eu saberia que o dono do bar da esquina não está sendo forçado a subsidiar minhas predileções). O concerto de ontem custou R$30. No ano passado, vi lá pelo mesmo preço um recital com Emma Kirkby que jamais esquecerei – até por não haver muito mais de 100 pessoas na platéia, ou nem isso. Só soube no dia, só comprei ingresso na hora e sentei na primeira fila.
Antes que alguém venha dizer que R$30 pode ser muito num país pobre etc, digo que as multidões que se dirigem para os bares da Lapa, as mesmas multidões que vão em sentido contrário ao meu quando saio da Sala, certamente vão gastar algum dinheiro.
***
Se você for a uma livraria grande, como a Cultura ou a Travessa, vai encontrar livros brasileiros e importados à venda. Os livros importados freqüentemente serão mais baratos que os brasileiros, mesmo os lançamentos de capa dura, com frete incluso. Agora, quando vamos para o catálogo de clássicos, a diferença de preço é absurda. Você pode comprar uma edição Penguin a R$20, e uma edição Dover a menos de R$10. Tudo bem que são livros de capa molíssima com as páginas em papel jornal, livros que não vão durar tanto assim. Isso é o mais interessante. A Penguin e a Dover são empresas e precisam ter lucros. Se vendem livros baratos com materiais baratos, livros quase descartáveis, significa que as pessoas os compram. E se compram livros descartáveis, é porque pretendem usá-los e jogá-los fora. Isto é, pretendem lê-los.
Passando para as mesas de lançamentos de editoras nacionais, veremos livros produzidíssimos, com papel e capa ótimos, livros que são objetos para ser guardados, não para ser usados. Vejam bem, não estou criticando as editoras – se elas continuam no mercado vendendo livros assim, ótimo; se elas não oferecem livros “descartáveis” a preços bem menores, certamente é porque sabem não haver demanda. Há demanda por belos objetos que possam ser agregados à identidade, isto é, que possam dizer aos outros (e a você mesmo) que você é uma pessoa simultaneamente culta e cool. Nada contra isso, aliás – exceto o fato de que eu pessoalmente preferiria livros mais baratos.
***
Uma das coisas que aprendi freqüentando um ambiente social muito diverso do meu, na Faculdade de Letras da UFRJ, é que existe entre os menos abastados, aqueles que foram alunos de escolas públicas por falta de opção, um mito bizarro em relação a nós, burguesinhos das escolas particulares.
Enquanto eu mesmo era tratado como freak por gostar de literatura (na escola, um dia meus amigos até me advertiram caridosamente que não pegava bem eu circular com livros na mão – isso é verídico), muitos de meus colegas da UFRJ julgam que meu interesse por poesia é uma conseqüência natural do poder aquisitivo dos meus pais, e que todos os adolescentes das escolas particulares comem Machado de Assis no café da manhã. E gostam.
Seria ingênuo e injusto da minha parte não admitir que estudar num “colégio particular de elite” provavelmente é muito melhor do que estudar na grande maioria das escolas públicas, mas de onde as pessoas tiram a idéia de que a elite econômica e a elite cultural se sobrepõem? Seria essa uma bela desculpa – “não tive oportunidades” – para justificar certos fracassos?
***
Diversas vezes já falei de como é mais importante o Brasil sair de você do que você sair do Brasil; digo isso porque já gastei muita energia psicológica imaginando maneiras de simplesmente ir embora, atribuindo as minhas falhas intelectuais ao ambiente. Mas a verdade é que eu deveria tentar ser menos sensível ao ambiente e admitir que a minha vida pessoal, nos poucos quilômetros que freqüento na cidade, tirando essas balas de fuzil em que tropeço, é bastante agradável.
O que dá medo, então, é exatamente isso: mesmo que você se concentre nas coisas que pretende entender, corre o risco de, diante do nível médio baixo, acabar se achando melhor do que realmente é, de ficar satisfeito com o que é apenas medíocre. De ser seduzido por essa vida boa e leve, e chegar à mesma felicidade que teria um jesuíta no Brasil do século XVII que abandonasse suas obrigações: “sou mais culto que essa gente que anda pelada, e posso andar pelado também.”
Não quero fazer outra reclamação sobre o superficialismo brasileiro, ou reclamar que “brasileiro não lê”; até agora, estou apenas narrando e tentando interpretar alguns fatos. Nossa “elite cultural” é minúscula, e não vou fingir que não me incluo nela – nem que seja porque o nível médio é baixo demais. Além dos concertos e dos livros, isso é demonstrado pelo fato de que para se tornar autoridade em qualquer assunto no Brasil basta declarar essa autoridade. Isso só não vale para o meio acadêmico, em que as autoridades ao menos costumam ter uma grande erudição; mas, fora das universidades, basta dizer que você sabe javanês. Deus sabe o quanto desgosto do Ministério da Educação (sobretudo por seu monopólio), e do ensino obrigatório, e do fato de as linhas de pesquisa oficiais dos departamentos dificultarem enormemente os estudos; mas mesmo com todas essas limitações burocráticas, as universidades são o lugar onde menos há enganação no Brasil – porque há pessoas ouvindo que têm idéia do que você está dizendo.