Ciência x literatura

Discordo deste post sobre estudos literários do começo ao fim. Discordo do que diz o autor e discordo das conclusões tiradas. Discordo tanto, e tanto, que mesmo sem tempo para desenvolver a resposta que gostaria, faço alguns comentários.

1. A crítica literária já nasceu com pretensões científicas e o próprio Aristóteles tentou desenvolver uma ciência literária na Poética, observando elementos comuns entre epopéias, tragédias e umas e outras. Quer dizer, nem ele achava que as obras literárias fossem indivíduos únicos em seu gênero e espécie, “singulares e absolutamente irredutíveis”. Ainda que se alegue que algumas das semelhanças apontadas por ele são superficiais demais para sensibilidades modernas, como, por exemplo, certos poemas serem escritos no mesmo metro, o fato é que elas funcionam; é o mesmo metro idêntico que aparece em obras diferentes. No entanto, o modelo estrutural da tragédia, com aner, hybris, moira, um coro etc, está longe de ser superficial e define um gênero do qual restam dezenas de indivíduos, e não apenas um.

2. A analogia com a maçã é inadequada, porque toda vez que você ler ou encenar Édipo Rei o protagonista vai descobrir que matou o pai e casou com a mãe. A obra de arte literária é muito mais simples do que qualquer realidade. Tudo nela sempre acontece do mesmo modo, do mesmo jeito. É mais fácil Édipo continuar descobrindo a sua própria identidade a cada nova leitura da peça do que duas maçãs idênticas existirem e caírem identicamente.

3. A idéia de que cada obra é gênero e espécie de si mesma é preconceito romântico levado ao paroxismo. As obras mais diferentes podem estar escritas no mesmo idioma, em verso ou em prosa, ter personagens ou não, ser (predominantemente) narrativas ou expositivas, compartilhar modelos – como os Lusíadas tem a Odisséia como modelo, ou Atlantis, de Auden, parodia Ítaca, de Kavafys – e estruturas… Como já dito em 1., há muitos universais na literatura.

4. Muitos departamentos de literatura já não fazem outra coisa além de tentar ser científicos, com direito a hipótese, teste, modelo… Veja aí o formalismo russo, o estruturalismo e, por que não, o modelo girardiano do desejo triangular. Muitos papers literários respeitados (e às vezes muito bons – minha atividade favorita tem sido ler e reler alguns papers acadêmicos de Girard) nada mais são do que a apresentação dos resultados da aplicação de um ou mais modelos.

5. É importante fazer dois comentários sobre a tentativa de fazer ciência da literatura e o ressentimento que isso pode gerar. Primeiro, certos modelos são muito ruins, normalmente por partir de postulados absurdos. Segundo, é inevitável que numa análise segundo modelos eles tenham uma certa precedência sobre as obras, e, se elas já são simplificadas em relação à realidade (e sua simplificação consiste sobretudo em poupar-nos da banalidade), os modelos são mais simplificados ainda. Um livro de 350 páginas como Mensonge romantique et verité romanesque pretende explicar milhares e milhares de páginas de Dostoievski, Cervantes, Proust, Flaubert e Stendhal – só para ficar nos principais autores analisados. E, dispensando as aplicações, o simples modelo do desejo triangular ou mimético ali exposto pode ser perfeitamente resumido em uma ou duas páginas. Por isso, ao ler obras com um modelo explicativo em mente, você está sobretudo lendo o modelo, testando o modelo, confirmando o modelo, desmentindo o modelo, repetindo o modelo, exatamente como a ciência parte das individualidades para chegar às generalidades. Só que também é inevitável que a atividade científica seja diferente da atividade de fruição literária.

6. Porém, não é nem tanto a existência de modelos ruins, nem a natural diferença entre atividade científica e fruição estética e imaginativa que leva a uma crítica literária estéril e desinteressante, mas… a própria crença romântica de que cada obra é única e irredutível. Acreditando que os artistas são seres mais únicos do que os outros, os críticos invejosos também desejam ser únicos e lançar olhares únicos sobre aquelas obras únicas e escrever livros únicos, para também serem reconhecidos como pessoas únicas, absolutamente diferenciadas da “grande maioria”. Tanto a criação artística quanto a atividade crítica se tornaram meios de legitimação do ego (de pessoas que, aliás, precisam dela, pois costumam ser bem feias). Com essa centrifugação, ou atomização, é óbvio que o terreno comum vai diminuindo, e as circunstâncias vão se tornando cada vez mais particulares, e com elas as oportunidades de fricção e interesse. Se antes a melhor coisa que a literatura poderia fazer era dizer algo óbvio que ninguém estava dizendo, e dizê-lo do melhor modo possível, e a função da crítica era mostrar porque e como aquilo era novo ou adequado, agora tanto a literatura quanto a crítica querem simplesmente falar o que ainda não foi falado, mesmo que para isso seja preciso matar (nessa ordem) a lógica, a semântica e a sintaxe.

Minha solução pessoal para a questão passa por T.S. Eliot, Cyril Connolly e René Girard. Acredito que, assim como a literatura precisa se renovar, também a crítica precisa se renovar. Cada geração precisa reavaliar o cânon e até refazê-lo (Eliot). Mas essa renovação hoje caminha na direção de uma individualidade cada vez mais abscôndita e por isso mesmo irrelevante (Girard). A crítica precisa reconhecer suas tensões naturais. De um lado, precisa ser ciência ou buscar ser ciência (Girard), e de outro, os textos da crítica precisam ser bem escritos (Connolly). Isto equivale a dizer que a crítica, de certo modo, também é literatura. Por uma questão existencial, ela depende da retórica. Por uma questão pedagógica, ela necessita da beleza.

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