Uma das maneiras mais persuasivas de desmoralizar uma afirmação sem no entanto refutá-la é simplesmente dar sua classificação e/ou explicar sua origem, como se dizer onde e quando uma idéia nasceu fosse a mesma coisa que mostrar sua falsidade.
Se eu disser que o marxismo, em última análise, é filho da heresia franciscana de Joaquim de Fiore, e que as idéias de Swedenborg e Jacob Boehme fazem parte de sua linhagem, eu nada disse que demonstrasse a inexistência da luta de classes ou que a ditadura do proletariado não chegará. Analogamente, dizer que as histórias do Antigo Testamento podem ser encontradas em narrativas de outros povos não é a mesma coisa que negar sua veracidade histórica.
Por que essa estratégia de desmoralização tem poder persuasivo? Porque atribuímos prestígio à originalidade absoluta e por alguma razão esperamos que a verdade seja única, especial e catártica. É uma postura semelhante à da menina que não pode mais sentir-se especial porque há outra com a mesma roupa na festa.
Assim, ao explicitar as raízes de alguma afirmação, nada fazemos além de revestir-lhe com a banalidade das coisas que já estão por aí há muito tempo. Apresentar a afirmação passa a ser pior do que encontrar alguém com a mesma roupa na festa: agora, é como se você usasse a mesma roupa que várias pessoas usaram na festa do ano passado, e o fato de outra pessoa dar-lhe essa informação na frente de todos só contribui para a sua humilhação.
É assim que um pseudo-argumento transforma-se, retoricamente, num argumento ad hominem, desqualificando o adversário como ingênuo que se julga original.
Mas de onde vem o prestígio da originalidade absoluta? Preconceito romântico? Dizer que é preconceito romântico seria mais o nome de uma resposta do que uma resposta propriamente dita, isso para não dizer que não passa do mesmo tipo de classificação que passa por explicação que acabei de mencionar.
Como estou obcecado pela obra de René Girard, lendo os livros em seqüência, como se fossem de fato a versão estendida de “Um longo argumento do princípio ao fim“, tendo a usar a explicação do desejo mimético (e, para dizer a verdade, estou me esforçando também para não tentar explicar tudo a partir do desejo mimético; alguém já verificou a falseabilidade da teoria?): há o desejo de demonstrar absoluta independência. Admitir que uma idéia vem de outra pessoa seria análogo a admitir que o ser da outra pessoa é maior ou mais intenso do que o seu próprio, como na relação entre o original e a cópia servil. Os argumentos existentes já são vistos como parte da competição; apenas o argumento original tem chance de pairar acima dela e esnobá-la; o argumentador que usa o que já existe sujeita-se ao prestígio concedido pela platéia ao argumento conhecido, ao passo que aquele que expõe a genealogia do argumento conhecido parece estar acima dele — mesmo que não o refute. Assim, desejosa de identificar-se com quem está por cima, a platéia sente-se “persuadida”, ou ao menos prefere declarar-se ao lado de quem aparentemente enxerga mais.
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