Há muitos assombros

Sófocles, trad. Lawrence Flores Pereira. Coro de Antígona, 332-375

Pollá tá deiná…

Há muitos assombros,
mas nada tão assombroso
quanto o homem. É ele que,
sobre o branco do mar,
por entre os vórtices das vagas,
foge ao tempestuoso vento sul.
E a maior dentre as deusas, a terra
indestrutível e infatigável, ele gasta
indo e vindo o arado ano a ano,
lavrando com a estirpe eqüina.

E o povo dos voadores pássaros
o homem destro em rastros, com redes
bem tramadas, após emboscá-lo
o caça, e a tribo da animalha bruta,
e a prole que do sal do mar se nutre,
e enreda com trapas as feras rudes
que rondam nos penhascos,
e o cavalo de lombo hirsuto
ele o prende, jugando a nuca,
e o indomável touro das montanhas.

E a palavra e o pensamento alado
e o elã que governa a cidade
aprendeu, e a fugir das borrascosas
flechas e dos granizos
dos inóspitos climas:
pleno de tramas, preso nas tramas
de nada que está por vir. Só não sabe
fugir ao sítio dos mortos,
mas contra as insanáveis pragas
um remédio ele urdiu.

Tendo algo do sábio e dos ardis
da arte bem mais que o esperado,
um dia alcança o mal, no outro, o bem.
Urdindo nas leis da terra
e na justiça jurada aos deuses,
é um grande na pátria, pária na pátria
se na audácia lhe escapa o bem.
Jamais partilhe meu Fogo
nem meus pensares
quem assim age.

Isto é uma pequena amostra do curso que começa na quinta-feira em SP.

Leitura e comentário: 4m40s.
[audio:assombros.mp3]


Antgona

Ezra Pound, que definiu a poesia como “linguagem carregada de significado”, dizia que mesmo nos melhores momentos da tragédia grega a linguagem não era tão concentrada quanto na poesia. Já Ted Hughes fez uma antologia de Shakespeare que vai além dos sonetos e poemas e inclui trechos das peças, alegando que certas falas “parecem auto-suficientes fora de seu contexto dramático e são capazes de ganhar vida própria na experiência geral do leitor” (pp. 3-4). Para Hughes, o contexto dramático pode limitar o uso de certos trechos, o que é verdade; mas, num contraste interessante, Hughes também afirma que certos trechos de Shakespeare são mais imediatamente inteligíveis do que alguns poemas de Yeats, citando como exemplo “Death”. Será que Hughes assim não está reafirmando o que disse Pound, já que o poema é menos imediatamente inteligível justamente por ser mais carregado de significado?

Tenho uma solução pessoal e provisória para o problema. Primeiro, é comum que, na apreciação das obras modernas, o leitor contribua com o contexto. Se um poema simplesmente parece uma fala destacada, um fragmento, ou, para usar uma imagem banal, a peça de um quebra-cabeça, é o leitor que entra com as outras peças, e não é de admirar que cada um fique com uma figura final diferente. Mas se a obra é um trecho de outra, então ela traz outro contexto que se acrescenta ao contexto que o leitor fornecerá. Se aqui a imagem do quebra-cabeça montado falha, porque mesmo que a peça encaixe terá uma diferença de cor, podemos usar outra: o neopoema extraído do contexto original é semelhante a uma peça de mobília estrangeira trazida de uma viagem: sua beleza aumenta no contraste com as coisas em volta e ainda evoca as boas lembranças do lugar distante. E, apesar da autonomia do objeto, de ele subsistir por si, é muito difícil não comparar os dois contextos e vê-lo como uma espécie de embaixador.

No papel de poema, este trecho de Antígona é um belo elogio ao homem. Um elogio transparente que parece ter sido evocado duas vezes em Hamlet: a primeira quando o personagem fala “What a piece of work is man” (Ato 2, Cena 2), aqui na tradução histórica e ainda inédita em livro do mesmo Lawrence Flores:

Que obra-prima o homem! Tão nobre em sua razão, tão infindo em faculdades, em forma e movimento quão rápido e admirável, na ação tão próximo dos anjos, na apreensão tão semelhante a um deus: a beleza do mundo, o paragão dos animais – mas que é isso para mim senão a quintessência do pó?

A segunda evocação vem quando recoloca a morte – o país não-descoberto, a terra ignota – como limite da ação humana no famoso monólogo “To be or not to be” (Ato 3, Cena 1). É claro, porém, que o homem grego é diferente do homem cristão de que fala Shakespeare, denunciado pela referência ao “pó”. O homem que maravilha Hamlet tem capacidades intelectuais; o homem elogiado pelo coro de Antígona desafia e supera o cosmos, ainda que não tenha um traço prometéico, já que age conforme as leis de homens e deuses e não pode perder o bem de vista.

Impossível é não observar o contraste constante no poema – mérito do tradutor – entre tramas e urdiduras, que são os traços verticais e horizontais de um tecido. “Pleno de tramas”, cheio de idéias; “preso nas tramas de nada que está por vir”, aprisionado por nenhuma circunstância futura, ele traça seu caminho horizontal individual. De homens e deuses vem a urdidura, o limite vertical a que deve conformar-se, pois o tecido final precisa ter forma, cor, clareza, e a vontade individual não pode – até por limitações intínsecas – imperar absoluta. Para manter a trama atada à urdidura, ele precisa de que sua audácia seja guiada pelo bem; e, se o homem não desejar agir assim, não deverá partilhar com os porta-vozes do homem comum ateniense.

Mas ao dizer “ateniense” já lembro do coro, já recoloco essa mensagem universal em um contexto, pois não tenho deuses pagãos a quem jurar nada, e aquilo que o pagão entenderia como lei é bem diferente da concepção de misericórdia e amor como leis superiores que há no meu cristianismo. Temos ainda o instinto da justiça, o desejo de retribuição por tudo; mas temos também a idéia do perdão, de que essa é a verdadeira lei, o segredo que permanece secreto apenas porque nosso instinto nos impede de vivê-lo. Assim, a fala coral pode ser vista como prenúncio de uma mensagem cristã, mas somente se lembrarmos que esse é um uso posterior, nosso, contemporâneo: que o poema que arrancamos do nobre pagão agora ocupa um novo lugar em nossa arrumação da sala cósmica.

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