Há séculos a geometria é um modelo para as ciências por causa do grau de certeza que suas premissas e conclusões oferecem. No terreno das artes, porém, nunca houve um modelo consensual; o mais comum é que o músico ache que a música é a arte superior, o poeta ache que é a poesia etc. Excetuando, é claro, W.H. Auden, que era poeta e julgava que a escritura de romances era a verdadeira arte superior.
No entanto, creio que há boas razões para que a culinária assuma seu devido lugar de modelo das artes, e não estou sendo engraçadinho ao dizer isso.
Primeiro devo explicar que não possuo nenhum preconceito romântico: acredito que tudo o que pode ser produzido, de poemas a sapatos, pode ser produzido com ou sem arte. Arte não é um objeto, mas uma qualidade do fazer. Outra coisa é areté, a palavra grega de difícil tradução que deu “arte” em português, mas que pode significar algo como “superação”, “ousadia” ou “virtude”. Digamos que a areté esteja um grau acima da arte: esta representa o domínio do bom método para a produção de um artefato qualquer, e aquela a superação surpreendente desse método, com efeitos mais fortes, recuperando o espanto inicial que toma a consciência quando ela vê diretamente, e não mais através das lentes da convenção estabelecida, um objeto novo. Por isso, a areté está para a arte assim como uma nova descoberta está para a ciência. O novo de hoje é o conhecimento estabelecido de amanhã. A areté de hoje é a arte de amanhã – um dia, Ésquilo foi extremamente ousado e colocou mais de um ator no palco. Daí, também, que a areté só exista perante o quadro de possibilidades artísticas conhecidas; ou, em linguagem mais simples, não é possível superar as regras se você nem as conhece.
Isso pode ser facilmente verificado pelas obras ruins: a tentativa de areté sem arte sempre resulta em algo simplesmente ruim, mas a arte sem areté é sempre mais tolerável. Maus poemas costumam ser pueris e confusos porque o “poeta” ignora o material com que trabalha. Antigamente, quando havia menos crença no inspiracionismo, a má poesia era ruim porque era excessivamente convencional e repetitiva. Hoje é o excesso de (tentativa de) originalidade que cansa. Um excesso, aliás, que já superou o paroxismo: se cada obra pretende reinventar a poesia, a linguagem, então precisamos reinventar todas as nossas categorias para apreciar cada uma delas. Só que recriamos nossas categorias apenas umas poucas vezes na vida, e os poucos artistas que conseguiram convencer sua platéia a fazer isso não apenas deram boas razões para tanto trabalho (normalmente, perceberam que as convenções da época tinham-se esgotado, e ofereceram uma nova articulação) como ainda conseguiram motivar a platéia a realizá-lo.
Daí que eu proponha a culinária como modelo para as artes. A experiência de uma boa refeição é suficientemente universal para que todos percebam que nela o prazer (a motivação) é necessário. Um grau acima, muitas pessoas podem perceber que há um elemento intelectual em qualquer alimento bem preparado, porque tudo o que é bem-feito tem apelo perante o intelecto. Como o homem é o animal racional, só aquilo que também é intelectual é plenamente humano. (Se você acha que estou falando da “razão cartesiana”, bem, azar.) Mas é o prazer na alimentação que motiva o intelecto, pois é o prazer no contato com a obra de arte que nos faz querer conhecê-la melhor – e ela, para ser mais perfeita, deve oferecer algo também ao intelecto.
Mais ainda, é mais fácil e menos demorado saber se você gosta ou não gosta de um alimento do que de uma música, de um quadro ou de um poema. Pode haver muita controvérsia a respeito da qualidade de uma música, de um quadro ou de um poema, e muitos preconceitos de gosto (isto é, puramente subjetivos) podem se imiscuir em sua análise. Mas, em questões de alimentação, a consciência daquilo que é apenas um gosto é aguda o suficiente para não produzir a rejeição intelectual de certos alimentos. Detesto feijão e sei claramente que isso me desqualifica para avaliar feijoadas. Detesto Walt Whitman e não consigo ter tanta certeza de que o problema é só meu.
A produção de uma obra de arte culinária também é suficientemente complexa para servir de modelo. É preciso conhecer muito bem os materiais e as ferramentas. É preciso às vezes ser lento, outras vezes ser rápido, e é sempre necessário ser preciso para atingir o efeito desejado. E é bonito saber que um apreciador habilidoso consegue reconhecer num alimento pronto não apenas os ingredientes mas todos os processos a que eles foram submetidos – uma crítica perfeita da obra de arte. Conhecendo os processos habituais, as possibilidades estabelecidas, o bom crítico saberia até reconhecer a presença de areté na obra de arte culinária que experimenta.
Outro evidente benefício da comparação com a culinária está na diminuição das vezes em que a platéia é sujeitada a experimentos. É muito comum, nas artes plásticas, no cinema, na música, no teatro e na literatura que se justifique alguma obra dizendo que ela é “um experimento”, sem dizer se ele deu certo ou não. Na culinária, nenhum artista-cozinheiro submeteria a sua platéia a uma obra que fosse apenas “um experimento”, sem que houvesse alguma certeza de que ele teve sucesso. E você pode até dizer que isso acontece, que há restaurantes bizarros em que esquisitices são servidas, mas aí eu não poderia fazer nada além de responder: e quantas galerias, quantas editoras sentem-se plenamente à vontade para dar ao público quase qualquer coisa que sua própria vaidade exija?
Por último, o mais interessante dessa comparação é ainda outra coisa: é evidente que, assim como quem possui uma determinada dieta alimentar sofre os efeitos dela em seu corpo e em sua vida – não estou falando só de engordar ou emagrecer; os alimentos têm inúmeros efeitos, como o café causar ansiedade em certas pessoas, o álcool retirar inibições etc – , quem possui uma determinada dieta de obras de arte também sentirá seus efeitos na alma e, numa certa medida, até mesmo em seu corpo. Com isso não estou propondo a criação de uma Food and Drug Administration das obras de arte, uma censura; mas também não posso ser tolo de acreditar que livros e músicas não têm efeito nenhum.
Seria igualmente interessante fazer analogias entre os preconceitos sociais relacionados aos hábitos alimentares e os preconceitos relacionados aos hábitos de consumo artísticos. Comer muito e desordenadamente é um vício; ler muito e desordenadamente não é? Aquele que se preocupa demais com a alimentação e evita obstinadamente alimentos de prazer mais imediato (como o chocolate) não pode ser comparado ao leitor que gosta de se vangloriar de desprezar a frivolidade?