Verdade e sedução

Há bons nove anos, reunia-me semanalmente com amigos para ler a tradução francesa das Investigações lógicas de Husserl, e lembro bem de termos comentado que um dos efeitos mais evidentes da dedicação à filosofia era uma progressiva imunização em relação aos argumentos retóricos. Não acho que estivéssemos errados, mas voltei a pensar nisso e vejo a necessidade de fazer alguns adendos.

Segundo Aristóteles, argumenta-se retoricamente com exemplos ou entimemas (também com provas técnicas, mas estas não me interessam aqui). Não preciso explicar o que é um argumento pelo exemplo – basta dar um exemplo: “não faça isso porque fulaninho fez a mesma coisa e se deu mal”. Um entimema é um argumento que confirma premissas em que a platéia já acredita. É o tipo mais persuasivo. Por isso, um desafio para um orador seria convencer uma platéia de cristãos de que um aborto é um ato de caridade, porque os cristãos crêem na caridade. Será sempre mau negócio jogar contra as premissas da platéia – o que pode atestar qualquer um que, numa mesa de bar, já tenha cometido a tolice de tentar discutir a sério.

Mas há o risco de interromper a atividade filosófica nesse estágio inicial. Ao examinar diversas premissas, seu primeiro ponto de apoio não é a verdade, mas as premissas de que você mais gosta, e é fácil tomá-las pela verdade mesma. É preciso ir adiante e tentar examinar a razão de se gostar tanto daquelas premissas. É por isso que não consigo acreditar em atividade filosófica que não passe por um auto-exame freqüente em que se estude a motivação psicológica do ato de assentimento intelectual. Esse exame servirá para “desmagnetizar” suas premissas preferidas.

Se você começa a fazer isso percebe imediatamente a impossibilidade prática de examinar detidamente todas as premissas que aceita, e também se dá conta de que os momentos em que você realmente esteve cara a cara com as coisas mesmas foram mais raros do que você imaginava, justamente porque o exame de uma premissa enraizada na alma é demorado, assim como o exame de alguma questão relacionada.

Por exemplo, desde cedo percebi que eu tenho uma disposição maior em acreditar em tudo o que for mais bonito e mais elegante. Discutindo qualquer coisa, posso dar ouvidos à sereia do sublime e facilmente me perder do verdadeiro destino. Claro que você pode dizer que a verdade é mais sublime do que tudo, e você terá razão. Outras pessoas têm mais facilidade para crer no pior, no mais mesquinho. Mas há o sublime e o sublime que eu quero que exista, há a verdade e há a premissa que me confirma psicologicamente.

Daí vem o risco de ser “vítima” de um discurso retórico que apele simultaneamente às premissas aceitas – ainda mais quando são premissas conscientemente aceitas, após uma certa depuração – e à vaidade. Isso é muito evidente nos discursos de todos os tipos de autores esotéricos sobre a religião. Raramente há uma contestação aberta de algum princípio. Quase ninguém faz como o Julius Evola e diz: “o cristianismo é errado”. Antes, reinterpretam o cristianismo à luz da premissa aceita de que há alguma verdade universal, e apelam à vaidade do ouvinte, que naturalmente crê que irá conhecê-la melhor que os santos e os papas depois de 50 páginas escritas em tom de verdade absoluta. A dúvida é longa e a tranqüilidade necessária para vencê-la é difícil. A confirmação de si mesmo é gostosa e fácil. É o pequeno orgasmo proporcionado pela masturbação mental.

Aliás, a vaidade acaba sendo o caminho tradicional da inversão de princípios. O sujeito acha que não cumprir os preceitos rituais do catolicismo é uma forma superior de catolicismo. Que poupar um bebê de uma família paupérrima de crescer nesse mundo terrível e cruel e ainda mandá-lo para o céu é um ato de caridade – eis como o nosso orador do começo do texto poderia apelar a uma platéia católica. Nas duas posições há a usurpação do papel de juiz último das coisas e a recusa das circunstâncias imediatas.

Por isso é preciso relativizar a idéia de que a filosofia nos imuniza mais e mais à retórica. Imuniza se nunca deixar de ser praticada: se houver amor à sabedoria enquanto virtude do sujeito, enquanto estado interior de vigilância permanente. Um pouco de filosofia servirá apenas para depurar algumas premissas, e o destino da viagem será confundido com sua primeira escala. Em vez de ser a ascese que prepara para enfrentar a sedução, será apenas a imunização contra os tipos mais vulgares de retórica, pouco podendo contra os tipos um pouco mais sofisticados, que requerem não apenas que o sujeito ponha o mundo em parênteses como também a si mesmo.

Uma resposta para “Verdade e sedução”

Os comentários estão fechados.

%d blogueiros gostam disto: