Um mover d’olhos, brando e piedoso

Luiz de Camões

Um mover d’olhos, brando e piedoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
uma pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;

um encolhido ousar, uma brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.

Leitura e comentário: 2m15s
[audio:ummoverdolhos.mp3]

Desta vez, decidi modernizar a grafia – e, em alguns casos, a pronúncia – das palavras que tinham formas quinhentistas. O “piedoso” era “piadoso” e, é claro, a “formosura” era “fermosura”. Minha edição, da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, ainda traz “ua” (com til sobre o “u”, além dos limites do teclado) no lugar de “uma”. A mudança mais sensível é a do primeiro verso, que perdeu uma de suas vogais abertas e tornou-se mais monótono, colocando ainda mais atenção sobre o “o” inicial de “olhos”, a quarta sílaba métrica e acento principal do verso. Com fins didáticos, eu deveria informar ao leitor que se trata de um verso sáfico, mas a nomenclatura métrica atinge níveis de pomposidade que não me apetecem muito.

A primeira coisa a chamar a atenção no poema é o fato de só aparecer um verbo propriamente dito no décimo segundo verso. Os infinitivos anteriores são formas nominais em todo seu esplendor, isto é, são nomes, não verbos – tanto que alguns estão até antecedidos de artigos. E dentro destes onze versos ainda notamos uma relação entre os dez primeiros e o último: aqueles trazem características que se notam de imediato, lembrando por várias razões um dos poemas mais famosos de Wordsworth, “She Was a Phantom of Delight”, e esse, “um longo e obediente sofrimento” (como esse verso ainda não virou título de nenhuma história? Poderia servir a A viuvinha, de José de Alencar, por exemplo) acrescenta um dado temporal, histórico, que coloca todas as qualidades enumeradas em outra perspectiva, aumentando a beleza moral.

Agora, curiosamente, Camões tanto disse que o “mover d’olhos” era “brando” como depois ainda mencionou – na rima – a “brandura” da mulher; decerto a repetição foi percebida. Por que a deixou assim? Certamente para rimar com “formosura”. Mas essa “formosura” era tão importante que merecesse uma redundância tão forte numa forma fixa tão curta? Sim, na medida em que Camões a utiliza para criar um clímax antes do anticlímax. Deixando de lado a questão do número de sílabas, pensemos que Camões poderia ter escrito algo como “beleza”. Ele não poderia ter escrito “encanto” para não denunciar o que vinha; preferiu “formosura” porque é justamente um modo mais “brando” da beleza.

A musa do poema, um verdadeiro modelo avant la lettre do romantismo neolatino, acaba por ser chamada de “Circe”. Ora, Circe é uma das feiticeiras mais cruéis, que transformou em porcos os homens da tripulação de Ulisses. É muito difícil saber se Camões usa Circe como mero sinônimo de “feiticeira” ou se pretende comparar-se a um porco que tenha desenvolvido os mais baixos instintos pela moça. Mas este é o tipo de ambigüidade que marca o interesse por algumas obras de arte: o confronto entre duas interpretações legítimas e perfeitamente inteligíveis, e que é o contrário absoluto da mera confusão.

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