O aplauso dos homens

Hölderlin / Tradução de Manuel Bandeira

Não trago o coração mais puro e belo e vivo
desde que amo? Por que me afeiçoáveis mais
quando era altivo e rude,
palavroso e vazio?

Ah! Só agrada à turba o tumulto das feiras;
dobra-se humilde o servo ao áspero e violento.
Só crêem no divino
os que o trazem em si.

Leitura e comentário: 1m53s
[audio:aplauso.mp3]

Ensaios Reunidos - I

Em seu ensaio A mensagem de Hölderlin, Otto Maria Carpeaux aponta para um detalhe do original alemão que a ademais excelente tradução de Manuel Bandeira não teria captado perfeitamente: que os versos finais apontam a identidade entre “o divino” e aqueles que “o trazem em si”: die es selber sind, para quem sabe alemão. Eu só sei Ich möchte die Schokoladetorte.

Feita esta ressalva, faço outra: não pretendo discutir o lugar deste poema na obra de Hölderlin, que conheço muito superficialmente. Interessam-me diretamente o assunto e a forma, que seguem o modelo clássico, sob certo aspecto didático. O poema propõe claramente uma tese. Não me parece sensato dizer que o poema deve ou não deve propor teses; parece simplesmente que alguns poemas as propõem, e outros não, e cada um merece ser discutido segundo seus méritos. Porém, um dos riscos mais evidentes de quem vai propor teses de modo tão descarado é o de ser rejeitado pelo público que não concorde com elas, o que, aliás, me parece inteiramente legítimo. Admitir que um autor tem o domínio da sua arte mas não gostar de suas obras é a mesma coisa que admitir que uma cozinheira é prendada e não querer comer os alimentos de que não se gosta. Eu mesmo não comeria feijão preparado por ninguém…

Alguns poemas traduzidos

Assim, a tese de Hölderlin, de que só quem traz o divino em si crê nele, ainda que tenha formulação ambígua, permite uma interpretação clara. O verbo “crer” é usado no sentido de “aceitar” ou “perceber” (que pode, aliás, ser o contrário de crer…), e o sentido daqueles versos finais guarda a mesma relação que existe entre os termos da tese aristotélica de que só é possível ensinar moral a quem tem boa índole. Faz-se uma distinção entre os homens. Mas Hölderlin começa distingüindo também dois momentos, quando ama e quando não amava. Neste, estava de bem com a “turba” que gosta de tumulto e vacuidades. Agora que se tornou uma pessoa melhor, não mais. Parece uma experiência comum, de fácil identificação. Quem, ao olhar para a própria vida interior, não se sente distinto do grosso dos homens? Quem não julga ter ao menos uma qualidade em grau excepcional que não seja reconhecida? Quem, nesta época de permamente adolescência, não sente que algo justifica olhar para seus semelhantes como seres inferiores? A atribuição de inferioridade, aliás, é confirmada pelo verso “dobra-se humilde o servo ao áspero e violento”. É verdade, admito. Mas também admito que hoje em dia tendo a suspeitar muito mais de quem suspeita de tanta gente mas nunca de si mesmo.

Existe, enfim, um aparente paradoxo. Aqueles que lutam pelo refinamento integral da alma, ou que passaram por certas experiências interiores incomuns, podem sentir-se distintos, especiais. Mas não será o discurso que justifica esta atitude justamente o mais banal de todos? Quem prefere humilhar-se? Quem, num princípio de ascese do gosto, aceitaria reconhecer a sua própria vulgaridade, sem no entanto enxergá-la como um dado essencial, e sim como um obstáculo?

Retomando o que disse no início, posso ter sérios problemas com a atitude de Hölderlin, com sua falta de suspeita contra si. Mas não tenho como deixar de admirar o fato de toda uma atitude estar perfeitamente sintetizada. Uma provável experiência autêntica do sublime, mesclada a um desprezo autêntico e a uma comovente ingenuidade.

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