Segundo / O das quinas

Fernando Pessoa, Mensagem, Primeira parte, I: Os Brasões

Os deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com a desgraça.
Ai dos felizes, porque são
só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta
o bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
que Deus ao Christo definiu:
assim o oppoz à Natureza
e Filho o ungiu.

Leitura e comentário: 2m02s
[audio:odasquinas.mp3]

Lamento nunca ter lido nenhum ensaio sobre Mensagem, que é, de longe, minha obra favorita de Fernando Pessoa. Se a melhor poesia é muitas vezes definida pela pressão que múltiplos significados exercem sobre o mínimo de palavras, cá estamos diante de um exemplo perfeito. Isto equivale, aliás, a dar a poesia um caráter simbólico no sentido de Susanne K. Langer, que define o símbolo como “matriz de intelecções”, isto é, como gerador de significados unívocos simultâneos. Assim, a diferença entre um texto denso e simbólico e um texto confuso é que o primeiro permite diversas interpretações perfeitamente claras, ainda que contraditórias entre si, e o segundo não permite nenhuma interpretação.

O que gera pressão em Mensagem, e lhe dá sua qualidade simbólica, é o embate entre duas visões de mundo. Uma pagã, esotérica, e outra cristã, sugerida inevitavelmente pelo tema da história de Portugal. Vejamos o que diz o próprio Pessoa no curto prefácio ao livro, que fala das qualidades necessárias ao entendimento dos símbolos:

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.

Antes que alguém venha falar da separação entre autor e obra — defendida radicalmente por meu quase-guru W. H. Auden, a quem não sigo neste ponto — , preciso observar que este é o único livro publicado integralmente por Fernando Pessoa em vida e assinado por ele mesmo, e que, como há de ser óbvio, toda obra é escrita por um autor. A obra não é necessariamente um mero prolongamento da sua vida ou de suas crenças graças à atividade livre do intelecto que a compõe; mas este mesmo intelecto existe dentro de uma alma, que está dentro de um corpo, e os dois têm suas circunstâncias. Há, portanto, um embate entre elementos conscientes e inconscientes, livres e necessários, e isto também gera “pressão poética”, na falta de outro termo.

Em Mensagem parte da pressão vem de duas idéias inconciliáveis que Fernando Pessoa pretende sinceramente conciliar, não de um embate com o meio. Pessoa considera, como vemos naquele trecho, que a graça cristã equivale à mão do “Superior Incógnito”. Muitas são as tentativas de fazer do Cristianismo uma espécie de roupagem de uma verdade esotérica, de transformar a doutrina explícita em mero véu de uma doutrina implícita mais verdadeira; mas o próprio fato de o véu do templo de Jerusalém ter-se rasgado quando Cristo morreu já repele o uso destas categorias. Não há esoterismo cristão. Podem ter havido ordens com ritos próprios e secretos, mas nenhuma delas jamais pôde pensar-se mais cristã do que o resto da Igreja, ou detentora de algo mais puro.

Ainda em termos de “pressão”, a primeira estrofe do poema é um excelente resumo do paganismo clássico: “os deuses vendem quando dão”, isto é, não dão nada de graça. Tudo tem um contraponto, algo que deve ser dado em troca. Nem mesmo os próprios deuses escapavam desta lei. Hades raptou Perséfone, e sua mãe, Ceres, só conseguiu um acordo com Zeus: metade do ano ficaria com ela, a outra metade com o seqüestrador. Aquiles literalmente comprou a glória com sua morte: sabendo que morreria em Tróia, preferiu ser cantado para sempre e morrer jovem a viver mais. Nem os poderes de sua mãe Tétis puderam salvá-lo: “compra-se a glória com a desgraça”. Ou, como diz o salmista, “os deuses dos pagãos são demônios”. No pacto com o demônio, no mundo cristão, o ser humano sempre oferta sua alma. Se você olhar bem, verá que no mundo pagão não era muito diferente. Um ato de legítima defesa custa a Édipo literalmente os olhos da cara e muito mais. Um ato de bondade de sua filha Antígona termina de destruir a família. Não se pode ser bom gratuitamente. É preciso sempre compactuar. Toma lá, dá cá. Mas cá estou eu, falando daqueles gregos, e aí está você, lendo: “Ai dos felizes, porque são / só o que passa!” Não é uma visão muito diferente daquela que Yeats expôs em The Choice.

Os dois primeiros versos da segunda estrofe retomam um dos temas mais fortes de Fernando Pessoa, ortônimo e heterônimos: a distância que há entre pensar, refletir, e portanto perceber uma ausência, uma separação, uma insuficiência, e ser de modo espontâneo, oblivious, despreocupado. É a menina que come chocolates em Tabacaria, aqueles chocolates cheios de “metafísica”. Se algo basta, não há reflexão sobre a experiência. Em muitos sentidos, é isto que muitos procuramos conscientemente: uma experiência bastante, que a atividade intelectual não consiga exaurir. Todas as pessoas que parecem contentes com o que contém tornam-se símbolos disto. Mas logo depois Pessoa afirma a equivalência de extensão entre o mundo, que é grande, e a alma, que é vasta. “Ter é tardar”: prender-se a uma experiência é perder todas as outras. Mas prender-se a uma experiência é também definir-se, delimitar-se, e assim estabelecer uma história. Tentar ter todas é indefinir-se, perder-se, e eu mesmo consigo compreender a terrível ansiedade gerada por esta perda… Ainda mais se consideramos a visão pagã, ou o que vigora num mundo regido por deuses: se não há um Bem infinito, ao menos há uma quantidade indefinida de bens que são, para quem tem a alma vasta, um prêmio de necessária consolação, e que sempre são comprados com a desgraça. Os deuses dos pagãos são demônios. Ter é tardar.

A terceira estrofe serve para marcar a opinião de Pessoa sobre o Cristianismo. Terá sido o Cristo definido por Deus Pai (Pessoa admite um Deus Pai ao chamar Cristo de Filho com maiúscula) pela desgraça e pela vileza? Será o Deus cristão um daqueles deuses só aceitam a desgraça por moeda? Mais ainda, é Cristo oposto à Natureza, e que “Natureza” é esta com “N” maiúsculo? A própria natureza dos deuses? A natureza como algo distinto de Deus, no sentido de “mundo” ou “cosmos”? Nenhuma destas perguntas sugere imediatamente uma resposta compatível com a doutrina cristã. Para Pessoa, Cristo é um símbolo como outro; a ação de Deus, a graça, também pode ser a ordem do “Superior Incógnito”. A natureza humana é danada, ter é tardar, compra-se a glória com a desgraça, e o próprio Cristo teria pago com ela a sua “glória” no sentido pagão, que é o fato de dois mil anos depois ainda estarmos falando n’Ele, que ainda motivou fatos importantes da história de Portugal, como a vitória da batalha de Ourique e a derrocada em Alcácer-Quibir.

Este parece, enfim, o mesmo Fernando Pessoa que muitos anos antes de Mensagem escreveu o soneto Súbita mão de algum fantasma oculto…

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