Odorico revive em Fernando Pimentel

Sei que já denunciei o culto da tosquice, mas confesso sentir uma atração perversa pela linguagem pomposa utilizada na política e nos ambientes corporativos. Abomino quase tanto quanto me espanto com a capacidade de preferir a expressão inflada à mais simples e direta. E, como penso muito nisto, decidi começar a documentar a débacle da nossa linguagem pública, fazendo sempre referência ao grande ícone destes abusos: Odorico Paraguaçu, prefeito de Sucupira na novela e série de TV O bem-amado, que bem poderia ser lançada em DVD.

O herdeiro de Odorico da vez é Fernando Pimentel, prefeito de Belo Horizonte, que publicou um artigo hoje em O Globo. Tudo bem, sei que provavelmente foi um assessor qualquer que escreveu o texto, que Pimentel apenas assinou; mas ele assinou, publicou e merece todo o crédito. Vamos então aos melhores momentos.

Promover uma educação de qualidade deve ser o objetivo de qualquer governo, seja municipal, estadual ou federal. Mas é ilusão deixar essa tarefa apenas com poder público e educadores.

O desafio terá que ser vencido coletivamente, por toda a sociedade.

O objetivo então é do governo, mas é toda a sociedade que tem que se empenhar nele?

Melhor seria, obviamente, que o “poder público” se abstivesse e, mesmo que não venha a se abster, fizesse a mais importante concessão da história do Brasil: retirasse do Ministério da Educação o poder de regular toda a educação do Brasil. Este é um estímulo que nossos burocratas poderiam oferecer à sociedade: criem seus cursos, seus diplomas, façam como acharem melhor.

Falta agora garantir a permanência na escola, transformandoa em local atrativo, que ofereça ensino de qualidade e também prepare o aluno para as demandas do mundo moderno.

“As demandas do mundo moderno” é um dos clichês preferenciais há mais de 100 anos. E até hoje estou tentando entender que demandas são essas. Será que esperam que a escola ensine a mandar SMS do celular? Não, claro que não. “As demandas do mundo moderno” é só uma daquelas expressões perfeitamente vazias cuja função é encerrar discussões e obter licenças para se fazer algo. O burocrata quer tomar mais dinheiro do pagador de impostos (“contribuinte” é a mãe dele) e por isso tasca em sua cabeça a “necessidade de atender às demandas do mundo moderno”.

Agora, vejam que maravilha de vacuidade o parágrafo seguinte:

A escola tem que acompanhar o ritmo da sociedade. Puxado pela tecnologia, o mundo passa por uma revolução cotidiana, com reflexos no fluxo de informações e no tipo de conhecimento adquirido. São mudanças que exigem ampla readequação de conteúdos, práticas e metodologias de ensino. Além de sintonizados com as novas tecnologias, escolas, professores e alunos devem estar conectados com a construção de novos valores de sociabilidade e ética.

“Reflexos no fluxo”, pura poesia, puro Mallarmé, puro simbolismo, veludosas vozes etc. De “a escola” até “escolas” não há um único significado apontável, a menos que aceitemos literalmente que a cada dia há uma nova revolução; mas a única revolução diária não tem nada a ver com a tecnologia, e sim com o movimento aparente do Sol.

A última frase, porém, é puro Stálin, puro Goebbels: “professores e alunos devem estar conectados com a construção de novos valores de sociabilidade e ética”. O mais bonito é observar como a frase já supõe que o que acontecerá em sala de aula não será decidido nem por alunos nem por professores: o burocrata, provavelmente, é que vai decidir quais são os tais valores com que eles devem estar “conectados”.

É o caso de perguntar: essa vacuidade toda, que tem propriedades hipnóticas, serviu só para tornar a mente do leitor dócil à última afirmação? Pergunto a sério: isto é acidental ou proposital?

Minha frase favorita, porém, é esta aqui:

Educação de qualidade depende basicamente da formação e da motivação do material humano envolvido no processo de ensino.

Ou, em português, a educação depende de professores e alunos capacitados e motivados. “Material humano envolvido no processo de ensino” é de gargalhar. O truque de fazer com que qualquer substantivo seja precedido de “processo de” é velho, mas sempre funciona.

O resto do artigo é propaganda de sua gestão em Belo Horizonte e a reafirmação de que a educação é importante para o Brasil virar uma nação desenvolvida etc. Bobagem pura. Primeiro porque fora do mundo militar o Estado nunca desenvolveu nada nem ninguém; quem traz progresso são indivíduos privados que não dependem da aprovação do Homer Simpson que não pode ser demitido. Segundo porque vincular a educação de indivíduos a objetivos de desenvolvimento nacional é loucura. A educação de indivíduos é tangível e idealmente acontece com acompanhamento próximo e atenção às aptidões particulares. Pode-se conversar com indivíduos e ver os bons ou maus frutos de sua educação e/ou auto-educação. Agora, o desenvolvimento da nação só pode ser medido por índices na melhor das hipóteses arbitrários e perfeitamente manipuláveis. A fantasia e a mentira são imprescindíveis para a sustentação de burocratas que pretendem “governar” milhões de pessoas.

Fiquemos com o prefeito de Sucupira, em visita à ONU:

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