O vaticanista acidental

O Globo, que deveria simplesmente traduzir os artigos indispensáveis de Sandro Magister, já apresentou seu colunista Luiz Paulo Horta como “vaticanista”. E no entanto o “vaticanista” hoje escreve um artigo tratando a volta da missa segundo o chamado rito antigo ou tridentino como se fosse a volta da “missa em latim”. Assim até parece que nós, tradicionalistas ou filotradicionalistas (a designação que inventei para mim mesmo), apenas temos um fetiche com o latim, um fetiche aliás tão poderoso que fez o bispo Marcel Lefèbvre suportar a excomunhão. Também parece, veja só, que não se pode celebrar a missa nova em latim – o que sempre foi possível.

Fico ainda mais chocado porque há um detalhe no texto de LPH que parece confirmar que ele pensa que a questão é esta mesma: o fato de dizer que o assunto não tem importância. Será que LPH não leu sequer O sal da terra, que contém o famoso trecho em que o então Cardeal Ratzinger defende veementemente a volta da missa dita “tridentina”?

A meu ver, devia-se deixar seguir o rito antigo com muito mais generosidade àqueles que o desejam. Não se compreende o que nele possa ser perigoso ou inaceitável. Uma comunidade põe-se a si mesma em xeque quando declara como estritamente proibido o que até então tinha tido como o mais sagrado e o mais elevado, e quando considera, por assim dizer, impróprio o desejo desse elemento. Pois em que se poderá acreditar ainda do que ela diz? Não voltará a proibir amanhã o que hoje prescreve?

É o próprio Cardeal Ratzinger quem, poucas palavras depois, diz que o talvez fosse melhor celebrar o rito antigo sem o latim… Então, Deus do céu, qual o problema do “vaticanista” do Globo? Não caberia a ele explicar que se trata do missal de 1962, a versão revisada do missal do Concílio de Trento? Ou será que ele acha que a expressão “missa em latim” só pode referir a missa tridentina? Novamente, será que ele não sabe que se pode celebrar a missa nova em latim?

O principal argumento que ele oferece não diminui o choque, pois continua insistindo no latim, primeiro comparando-o ao hebraico e depois ressaltando que ele é nossa “matriz cultural”, o que seria demonstrado por umas quantas expressões latinas que persistem no português, como data venia – a visão superficial que nos acostumamos a esperar do jornalismo.

Para que vocês vejam que eu não estou mentindo, reproduzo aí embaixo, no “leia mais”, o trecho do artigo que fala da “missa em latim”.

Luiz Paulo Horta, O Globo, 18 de julho de 2007

A famosa questão da missa em latim não merece a tinta que já correu sobre isso. Chega a ser espantoso que um bispo italiano tenha declarado, ao saber da notícia, que era “o dia mais triste da minha vida”, e que ele ia chorar por causa disso. Uma reação tão estrambótica talvez tenha a ver com o fato de que, para algumas pessoas, há duas igrejas, antes e depois do Vaticano II. Mas é uma igreja só.

O Papa não mandou rezar missa em latim. Apenas revogou a virtual proibição que pesava sobre isso. Em tempos menos confusos, seria a coisa mais natural do mundo.

O latim faz parte do patrimônio da Igreja. É a “língua sagrada” do catolicismo, em que, durante séculos, lia-se a Bíblia; e todas as missas eram rezadas em latim. Pode haver acervo cultural mais impressionante do que esse? Sem uma conotação explicitamente religiosa, o Estado de Israel, fundado em 1948, fez questão de recuperar o hebraico como língua nacional, porque em hebraico foi escrita a Torá. Para os judeus, que sabem o que é memória, isso fazia todo sentido, e, por causa disso, o hebraico voltou a ser uma língua viva.

No Ocidente, o latim é a nossa matriz cultural, a “língua franca” do Império Romano. Já não voltaremos, agora, a falar latim. Mas saber latim dá uma outra profundidade de visão a quem fala francês, italiano, espanhol, português.

E é fácil ver como, durante muito tempo, mesmo sem ser falado, o latim continuava presente, através de expressões de uma força e concisão únicas. O povo do “jurídico”, por exemplo, nunca abriu mão do “data venia”. E o ilustre Paulo Rónai, num livrinho delicioso, encarregou-se de preservar e explicar as sentenças mais famosas que, até bem pouco tempo, se usava — todo um patrimônio lingüístico.

“Carpe diem” — que quer dizer “Aproveita o teu dia, porque é só isso o que nós temos”; “Cogito, ergo sum” — o lema de Descartes, “Penso, logo existo”; “Homo homini lupus” — “O homem é o lobo do homem”; “Mens sana in corpore sano”, que dispensa tradução. E uma expressão bem atual, de Cícero: “O tempora, o mores!” (Ó tempos, ó costumes!).

Se o latim continua, assim, a formar o pano de fundo da cultura “vulgar”, que dizer da cultura eclesiástica de que ele era a pedra de toque? Como imaginar que nunca mais se diria uma missa em latim? Inclusive porque, com o latim, sempre se preservou a universalidade da Igreja. Na hora de celebrar um rito realmente “universal”, vamos fazer o quê? Missa em inglês? Em esperanto? Enfim, uma discussão tão boba que não deve durar.

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