O guardador de rebanhos
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
e os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
e com as mãos e os pés
e com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
e comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
e fecho os olhos quentes,
sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
sei a verdade e sou feliz.
X
“Olá, guardador de rebanhos,
aí à beira da estrada,
que te diz o vento que passa?”
“Que é vento, e que passa,
e que já passou antes,
e que passará depois.
e a ti o que te diz?”
“Muita cousa mais do que isso.
fala-me de muitas outras cousas.
de memórias e de saudades
e de cousas que nunca foram.”
“Nunca ouviste passar o vento.
o vento só fala do vento.
o que lhe ouviste foi mentira,
e a mentira está em ti.”
Duração: 4m16s
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Ezra Pound definiu o verso livre como aquele que segue não “o metrônomo”, mas “a seqüência da frase musical”. Como muitas definições de Pound, vemos que ela tem grande valor retórico e pouco valor científico: o “metrônomo” da prosódia não é necessariamente contrário à “seqüência da frase musical”, ou melhor, só é nas mãos do mau artista. Na tradução do Torso Arcaico de Apolo por Manuel Bandeira vimos como Otto Maria Carpeaux considerava que, sob o soneto aparente, havia na verdade o verso livre. O mesmo Bandeira, no início do fundamental Itinerário de Pasárgada (pp. 311-3 da Seleta de Prosa da Nova Fronteira) explica como o verso livre se justifica “por amor de um ritmo um pouco mais sutil do que o estritamente estabelecido pelo número fixo de sílabas”. É isto sempre que está em jogo: o ritmo. Fernando Pessoa pode ter dito que a poesia é “a música que se faz com as idéias”, mas acho que seria mais preciso se tivesse dito que é a música que se faz com as palavras. Bastaria recordar que palavras têm significados (algo infelizmente necessário hoje em dia) e já estaríamos próximos de uma boa definição.
O próprio Fernando Pessoa foi um dos mestres do verso livre, obedecendo tanto à seqüência musical natural da fala que temos a impressão de que ele praticamente inventou o monólogo interior. É curioso pensar que, na cabeça de Fernando Pessoa, tudo tinha sotaque português, portanto muito diferente do nosso, mas isto não o impediu de ser um dos poetas mais amados e vendidos do Brasil. Uma coisa é traduzir um poema, e outra é lê-lo num idioma que é fundamentalmente o mesmo que o seu, mas pronunciado de maneira completamente diversa, e com diversas nuances diferentes. Portugal é muito diferente do Brasil; os portugueses são muito diferentes dos brasileiros, falam o idioma com menos vogais abertas e dão muito mais ênfase às consoantes; tenho certeza de que os poemas de Pessoa são “sentidos” de maneira muito diferente lá. Talvez até, só por causa da sonoridade, aquilo que nos parece aqui um devaneio interior lá tenha um tom mais afirmativo e grave.
Voltando ao assunto próprio, se a pronúncia dos fonemas já faz uma diferença gigantesca para o impacto de um poema (e isto é o que mais obviamente se perde na tradução), seu ritmo também não fica atrás. Dominá-lo, saber posicioná-lo em relação à fala cotidiana é tudo. O verso livre, se não vai dar conta de um esquema formal que tanto poderia existir sem um poema particular que poderia ser usado em vários poemas, vai se basear em elementos muito mais sutis. A frase musical próxima da fala – sem deixar de ser fala para ganhar uma partitura, por favor – é mais difícil de capturar. É preciso ter bom ouvido e boa imaginação para conseguir evitar os dois grandes riscos, o de achar que o poema pode ser confuso porque a fala cotidiana é um tanto desordenada, e o de simplesmente sair apertando enter em determinados pontos só para transformar o texto em versos.
O poema em verso “livre”, enfim, não é a mesma coisa que o poema em que diversos metros se alternam (e que engana muitos leitores amadoríssimos deste país em que o estudo de prosódia é mais incomum que o estudo de Kant), mas o poema em que a melodia e o ritmo têm uma precedência absoluta. Ainda assim, não consigo deixar de achar que poemas “livres” como o “Torso arcaico de Apolo”, que também obedecem a uma forma fixa (pode ser uma forma fixa criada pelo poeta; não precisa ser uma das formas fixas tradicionais), são superiores, por combinar – os músicos que me corrijam – melodia e harmonia, projeção e base, destaque e fundo. A cada audição o poema ganha em musicalidade, forçando a nossa atenção para que sejamos capazes de apreender sua beleza instantaneamente. “Força é mudares de vida”; força é ficares calado e atento. Já que é dificílimo ouvir e apreciar a música dos acontecimentos enquanto eles acontecem, ao menos um poema…
Uma coisa que não tive tempo de estudar, e infelizmente não terei tão cedo, é a relação entre complexidade sintática e o uso de formas fixas. Todos os poemas em que consigo pensar que têm mais subordinações e inversões seguem formas fixas. De início poderíamos pensar que o verso livre facilitaria o uso de estruturas sintáticas mais complexas, mas parece que acontece o inverso, provavelmente por causa da necessidade de buscar a proximidade com a fala. É preciso que um lingüista fique contando as coordenações e subordinações nos poemas para que tenhamos uma estatística e aí possamos realmente investigar o fenômeno, se for o caso. Por ora, apenas digo que parece que é assim.
Agora, eu poderia ter escolhido diversos poemas de Fernando Pessoa – o Poema em linha reta ou o poema dos jogadores de xadrez teriam sido ótimos para falar do verso livre – , mas estes dois permitem que eu complemente um assunto em que já toquei. Como já disse, um dos grandes temas pessoanos é a diferença entre pensar e sentir, como se pensar fosse uma modalidade mais tênue de ser, e sentir uma modalidade mais intensa. Pessoa ressente-se o tempo todo de não conseguir fazer com que seu pensamento e suas sensações se tornem uma coisa só, e no poema IX chega a apelar: “meus pensamentos são todos sensações”. Se o intelecto não consegue produzir a inteireza da experiência, que seja abolido. Ora, o homem é o animal racional, distingue-se dos animais por ser dotado de intelecto, mas para ele as coisas que não têm intelecto são mais inteiras. A mais famosa exceção é a menina comedora de chocolates de Tabacaria, que, por ser criança, também não tem um intelecto pleno. A nostalgia de Pessoa pela inteireza da experiência é aquilo que Auden referiu quando falou que o artista, sendo uma pessoa de “consciência e tensões altamente desenvolvidas”, ama e deslumbra-se com aquilo que tem mais vida. Um tema semelhante, aliás, perpassa a obra de Bruno Tolentino, que se preocupa em não transformar a atividade reflexiva em fuga do mundo real, que é inteiro mas impermanente.