Parai tudo que me impede de dormir:
esses guindastes dentro da noite,
esse vento violento,
o último pensamento desses suicidas.
Parai tudo o que me impede de dormir:
esses fantasmas interiores que me abrem as pálpebras,
esse bate-bate do meu coração,
esse ressonar das coisas desertas e mudas.
Parai tudo que me impede de voltar ao sono iluminado
que Deus me deu
antes de me criar.
Leitura e comentário: 3m30s
[audio:sono.mp3]
Jorge de Lima é um dos nossos mais formidáveis poetas, mas escolhi um de seus poemas um pouco menos formidáveis só para poder esclarecer algumas coisas que venho dizendo. Podem acusar-me de preferir a poesia metrificada; é verdade que a maior parte dos autores que releio regularmente utiliza alguma espécie de metro. A atenção a ele, que é na verdade uma atenção à prosódia, é que permite que o poeta crie ritmos; e se dizemos que Eliot é grande, é sobretudo porque ele deu tanta atenção à prosódia que criou muitos ritmos inesperados, distantes dos metros conhecidos. O famoso “verso livre”, que o próprio Eliot disse não existir para quem quer fazer um bom trabalho, precisa encontrar elementos formais para se justificar, porque o que distingue um texto poético – o que o distingue de modo tangível – de um texto em prosa é a divisão em versos.
Não basta quebrar o texto em pedaços aleatórios e chamar os caquinhos de versos. É preciso haver algum critério que justifique as quebras. Um verso metrificado dentro de um poema que segue algum esquema pode ser justificado pelo esquema, mesmo que a sintaxe exija que a leitura continue no verso seguinte. Um verso que não faça parte de um esquema puramente sonoro maior só tem a sintaxe, e o conteúdo do que é dito assume a primazia na determinação das quebras. É difícil imaginar que seja de outra maneira, ainda que seja claro que qualquer bom poema, escrito ou não em “verso livre”, vai ter uma certa harmonia entre forma e conteúdo.
É verdade que este poema é um exemplo simples; depois pegarei um outro mais complexo, mas é preciso começar do começo. Tirando o penúltimo verso, todos os demais terminam com alguma pontuação. Não há nem sintagmas cujos rompimentos precisem ser justificados. A quebra dos versos finais é simples de entender: a pausa criada dá a surpresa. O “sono que Deus deu” pode ser um sono qualquer, ou um simples bom sono perfeitamente terreno. Mas o sono “antes de me criar” confere a tudo o que veio antes uma certa dimensão mística que não estava clara no início da leitura. “Antes de me criar”, por sua importância, precisa estar isolado do resto do poema. Se Jorge de Lima tivesse escrito “o sono que Deus me deu antes de me criar”, tudo num único verso, não haveria o destaque e até a nossa compreensão do poema, mesmo que não fosse prejudicada em última instância, não seria tão imediata.
Por fim, a idéia do “sono iluminado / que Deus me deu / antes de me criar” é curiosa. Se ele o recebeu antes de ser criado por Deus, só pode estar se referindo a algo que é seu de direito, a algo que Deus deu a toda a espécie humana antes da geração de cada indivíduo; ou a algo que Deus Pai deu a Cristo, modelo de toda a criação (embora não custe observar que a poesia não é o lugar do rigor e que este já foi para o espaço há muito tempo, porque em Deus não há antes nem depois). O “sono” sugere um descanso, é claro; e o contraste com o “iluminado” é que mostra que não se trata propriamente de um sono, mas de um estado de repouso em que a inteligência está iluminada pela luz divina. A idéia, porém, é clara: trata-se de admitir que Deus está mais no recolhimento do que no barulho, como nos versículos famosos do capítulo XIX do primeiro Livro dos Reis que dizem que Deus não estará nem no vento, nem no fogo, nem no terremoto, mas num “sopro de branda viração”. Aliás, em inglês a tradução disto é still small voice. Deus sabe o que está no hebraico original.