Os poderes infernais

Carlos Drummond de Andrade, A vida passada a limpo.

O meu amor faísca na medula,
pois que na superfície ele anoitece.
Abre na escuridão sua quermesse.
É todo fome, e eis que repele a gula.

Sua escama de fel nunca se anula
e seu rangido nada tem de prece.
Uma aranha invisível é que o tece.
O meu amor, paralisado, pula.

Pulula, ulula. Salve, lobo triste!
Quando eu secar, ele estará vivendo,
já não vive de mim, nele é que existe

o que sou, o que sobro, esmigalhado.
O meu amor é tudo que, morrendo,
não morre todo, e fica no ar, parado.

Leitura e comentário: 2m39s
[audio:poderes.mp3]

A vida passada a limpo

Existem poemas que são e serão sempre misteriosos porque as referências que trazem são tão subjetivas, tão particulares do autor, que o leitor provavelmente só poderá especular a respeito delas, sem jamais realmente saber do que ele está falando. E não venham me dizer nem que entender o conteúdo do poema é irrelevante, porque a linguagem, sendo também feita de significado, deve ser inteligível, assim como tudo que é feito dela, nem que a obra é tão aberta a ponto de admitir as mais variadas interpretações, porque há limites. Ninguém vai achar que o “lobo triste” do poema de hoje, para usar a abominável linguagem das provas de vestibular, “demonstra preocupação ecológica por parte do autor”.

Mas existem outros poemas que, apesar de muito atraentes, parecem também um tanto misteriosos à primeira vista. Uma das principais razões para isto é que os poemas se referem a determinadas experiências que não tivemos e que não conseguimos imaginar. O mundo é vasto, o mundo da literatura parece até mais vasto, embora não seja, e para ser um bom leitor é preciso ser capaz de sair de si mesmo e, mais do que imaginar as experiências descritas pelos autores, relacionar-se com elas pessoalmente, tendo por elas simpatia. A atitude não é muito diferente do que deveria fazer um estudante de filosofia: para testar a veracidade de uma proposição ou mesmo de uma filosofia, é preciso pensar a partir dela, supor, ainda que por instantes, que ela seja verdadeira. Do mesmo modo, com certas obras de arte, talvez elas sejam belas a partir de um determinado ponto, que devemos encontrar antes de descartá-las. Claro que você pode dizer não querer ter este trabalho, mas eu diria que você quer e já o realizou diversas vezes, em relação a vários objetos, porque ele faz parte do processo natural de amadurecimento.

Este poema de Drummond, publicado em A vida passada a limpo, seu último grande livro (depois ele se tornou um “poeta de momentos”), trata de um amor que tem um efeito paralisante sobre a pessoa que ama. Não paralisante no sentido de impedir a pessoa de se aproximar da outra amada, mas paralisante por ser tão constituído de fantasia que esmaga a famosa “vida real”. Logo na primeira estrofe sabemos que o amor “faísca na medula” e “na superfície ele anoitece”: isto é, fica do lado de dentro, não se manifesta propriamente. Mais interessante é ver que, apesar de ser “todo fome”, quando chega o momento de vir à tona, de satisfazer-se, “repele a gula”. Mas não é a timidez, e sim a fantasia, ou alguma espécie de maluquice, que o impede, porque “uma aranha invisível é que o tece”. A aranha tece uma complexa teia, normalmente distante do chão, sendo por isso um símbolo natural da imaginação, aliás muito aproveitado por Bruno Tolentino em seus poemas, que costuma lhe opor “o verme”. A aranha fica representando o “mundo como idéia”, enquanto que o verme representa a necessidade de ser fiel à realidade e à experiência. Se o amor de Drummond é tecido pela aranha, nasce do desejo de fantasia, e do desejo de perfeição, que é ancestralmente simbolizada pela geometria, remetendo de novo à teia. Por isso é que o amor, “paralisado” por sua própria natureza imóvel de teia, “pula”: assim como um quadro pode ter vida sem no entanto deixar de ser um quadro inanimado, também este amor vive e se manifesta só pelo que sugere, não por ter alguma outra conseqüência mais imediata e natural, como um encontro.

Ele “pulula, ulula” dentro do autor, mas só dentro; por isso é que é um “lobo triste”, que mesmo sendo um lobo não age como um lobo. O autor já está tão conformado àquela vida interior intensa, sem complemento exterior, sem a companhia do ser amado, que nem é mais o amor que existe por causa dele, mas ele que, tendo a existência esmigalhada por tentar viver como se fosse uma pura alma sem corpo, vive dentro de seu amor-teia (e eu sei que esse “amor-teia” revela quantos trabalhos de faculdade já escrevi). A última comparação, depois do esmigalhamento, é com a morte. Quem morre efetivamente é o corpo, e como aquele amor não consegue sair da alma, é natural que não morra “todo” e resista de alguma maneira. Seria melhor dizer que em vez da morte natural, que é uma espécie de extinção, aquele amor causou uma espécie de petrificação, causando a imobilidade, mas não o fim. Daí é que percebemos a razão de o poema se chamar “Os poderes infernais”: mesmo não causando a impossível morte da alma, sua paralisia, que leva à paralisia das coisas do corpo, corresponde a um estado infernal, uma “morte para o mundo” à qual não se segue uma abertura para outras coisas, mas apenas o aprisionamento daquele que julga estar “amando” nas suas próprias idéias de amor, de amor que, por arrefecer (isto é, esfriar) na superfície, não tem toque, nem encontro, nem nada.

Valeria a pena ainda perguntar se este poema tem alguma relação com a visão de Eros: será que o amor esfria por nervosismo? Será que a recusa do encontro – “todo fome, e eis que repele a gula” – acontece por um excesso de reverência em relação ao ser amado? E devemos ainda perguntar: em que medida isto pode ser realmente chamado de amor, se seu principal efeito é a paralisia da alma e a conseqüente destruição da vida? Será possível falar de amor quando este amor inviabiliza, por sua própria natureza, um relacionamento?

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