Os liberais do Brasil precisam estudar mais

Não posso deixar de dizer que estou numa situação um tanto privilegiada: O Indivíduo tem suas credenciais católicas e liberais. Não apenas fomos os primeiros a linkar e traduzir textos de gente como Lew Rockwell (ele mesmo um antigo contribuinte da Latin Mass Magazine, sabiam?) e Thomas Sowell, como fomos os primeiros a defender na internet coisas como a missa tridentina. Mais que isso, este site, originalmente um jornalzinho universitário, foi criado há 9 anos e meio para mostrar que não é preciso “raciocinar em bloco” seguindo certos preconceitos, e tem, desde a sua fundação, um ateu sério entre os autores, o que nunca me incomodou.

Passo então ao assunto mesmo deste texto. Sem discutir os méritos de um livro que não li (e provavelmente nem vou ler, por uma simples questão de prioridades), o fato é que o recente The God Delusion, de Richard Dawkins, provocou um surto de anti-teísmo no mundo inteiro. Aqui no Brasil ele foi aparentemente mais intenso entre os liberais, que têm uma ala “randiana” forte e gostam do famoso egoísmo utilitarista, e deixou exposta uma tremenda falha de formação sua: o desconhecimento quase absoluto de assuntos religiosos e teológicos, e ao que tudo indica o desconhecimento absoluto de absolutamente todos os assuntos, excetuando algumas doutrinas liberais. Este desconhecimento, somado ao desconhecimento que muitos religiosos e leigos cristãos adoram cultivar a respeito de assuntos políticos e econômicos, é uma das maiores chagas da vida cultural brasileira. Na verdade, o cultivo orgulhoso da ignorância é, por aqui, mais que uma chaga, uma verdadeira praga.

Com o livro de Dawkins, não apenas este problema ficou mais evidente entre os liberais, como eles ainda demonstraram compartilhar uma boa parte dos vícios da formação deficiente das esquerdas, e discutir com eles já vem se tornando a mesma coisa que discutir com elas, apenas com a polaridade invertida. Eles lêem coisas que não estão escritas, falam do que não conhecem, e acreditam que uma frase está cheia de significado quando está apenas cheia de pompa.

Vejamos o mais recente exemplo disso, agora dado por Anselmo Heidrich no site do Instituto Millenium. O texto é uma resposta ao trecho do livro do Papa Bento XVI em que ele diz que “Marx forneceu uma imagem clara do homem vitimado por bandidos”. Por mim, acho que foi uma declaração relativamente inócua (não conheço nenhum católico que tenha se escandalizado com isso) e que não representou de maneira nenhuma um endosso, ainda que parcial, do marxismo pelo Papa. Mas muitos liberais e conservadores ficaram escandalizados porque, por razões insondáveis, acreditam que o monarca absoluto de um Estado do tamanho de uma praça e chefe da organização mais antiga do Ocidente deveria estar 100% do lado deles, inclusive na sua escolha de vocabulário. Houve mesmo quem exagerasse muito maldosamente, passando por cima de toda a doutrina social da Igreja, que coloca a desigualdade na base da sociedade e diz ser perfeitamente natural que pessoas mais industriosas ganhem mais dinheiro, e tentasse colocar o Papa contra os capitalistas apenas por conta de sua generalização, e não sei quem vai discordar que tanto a refutação como a absolutização de generalizações são normalmente expedientes de quem finge não entender porque tem uma agenda a cumprir. Mas o assunto aqui não é este, e sim a confusão mental dos nossos poucos liberais. Vamos ao texto:

Ao invocar o conceito marxiano de “alienação” e dizer que o mesmo “forneceu uma imagem clara do homem vitimado por bandidos”, o Papa Bento XVI parte de um pressuposto, o de que as pessoas têm um desejo

não satisfeito de realização.

1. O Papa disse que quem forneceu “uma imagem do homem…” foi Marx, e não “o conceito de alienação”.

2. O autor do artigo, Anselmo Heidrich, tirou da cartola que o Papa parte do pressuposto do desejo não satisfeito de realização.

Pelo menos, assim pensava Karl Marx, em quem o papa se baseou.

3. Pensava mesmo?

Não esqueçamos que tudo em Marx corrobora, teleológica e objetivamente falando, para um colapso do capitalismo. Não fosse isto não haveria nada demais em citar Karl Marx.

4. Isto é, a cada vez que eu cito Marx, um capitalista pára de bater as asas e morre.

Nada de mais, bem como desnecessário, pois alienação pode ter um significado bastante genérico como “falta de percepção de significado”.

5. Mas não era tudo de ruim? E você não tinha certeza de que o Papa falava do conceito “marxiano” de alienação? Segundo o link da BBC fornecido, o Papa usou aspas: “alienação”. Foi como se refererisse ao conceito de Marx em sentido estrito. Tanto que o criticou.

Mas, se entender que o significado de algo corresponde a mudar uma realidade criando um novo mundo, o autoconhecimento enquanto ser

alienado para não alienado significa, no entendimento marxiano, passar de “classe em si” para uma “classe para si”.

6. Qual o sujeito do verbo entender? O Papa? Marx?

7. Que raio de coisa significa “o autoconhecimento enquanto ser

alienado para não alienado”? O conhecimento é um ser?

Sim, desconsidera-se o individuo para pensarmos em uma categoria coletiva, a classe social.

8. Hã? E daí? A classe social marxista, quase uma substância no sentido aristotélico, pode ser um grande exagero, mas é insensato sugerir que não exista classe social em sentido nenhum.

Seguem-se dois parágrafos inteligíveis. Depois:

Embora não esteja explícito, me pareceu que a crítica papal seja ao sentido de auto-realização inscrito no consumismo.

9. Mas você não tinha dito no início que era isso aí mesmo?

Mas, sinceramente, quem “se realiza” consumindo? O consumo, assim como a renda ou o lucro “não realiza ninguém”. Eles nada mais são do

que índices da própria realização, em um sentido bem estrito, já consumada. Quando eu compro livros ou cds (sim, ainda os compro) não estou “sendo realizado”, mas “me realizo” pelo meu trabalho como professor. Neste caso, o ato de consumir é mera decorrência. Que o papa não veja assim é direito seu, que ele ache que pensemos o contrário, nos auto-realizando através do consumo é um erro grosseiro, uma pressuposição de que quem atua no mercado não passa de autômato sem vontade e consciência próprias.

10. De onde ele tirou que o Papa disse isso, e que as pessoas pensam como ele? Eu nunca achei que o fato de eu poder comprar livros fosse um índice da minha própria realização. Além disso, será que o Papa não diria que o consumo *não é* uma realização? Parece algo que trivialmente sairia da boca de qualquer sacerdote…

(…) Mas, sinceramente, como falar a marxistas ou aos espíritos

religiosos mais ortodoxos que podemos ter uma consciência e livre-arbítrio pautados por uma moral que não seja hierarquicamente superior ao conceito de indivíduo?

11. Já experimentou abrir a boca e falar? Além disso, parece-me que toda a moral cristã (de qualquer denominação) é baseada… na liberdade individual. Acho que o Anselmo faltou às aulas de catecismo.

(…) Se para Marx, a alienação residia no desconhecimento de todo processo de produção no qual participa o trabalhador, a critica explícita do papa é quanto à compulsão ao consumo.

12. Decida-se, rapaz. Ou você tem a impressão de que o Papa falou isso, ou é uma crítica explícita.

Como antípoda tanto Bento XVI, quanto Marx advogariam um utópico estágio de consciência e auto-realização. O segundo no comunismo, o

primeiro em uma sociedade pautada por valores religiosos. Não sei bem como o papa definiria esta, mas me arrisco a dizer que implica em um estado não laico a tomar como exemplo as mais recentes críticas do Vaticano a ausência de referências às “raízes cristãs da Europa” na nova Constituição da União Européia. Ou seja, contra uma das maiores realizações da humanidade que é a separação entre estado e igreja.

13. Bento XVI, advogando utopias? Acho que não. Além disso, ele sempre insistiu que a separação de Estado e Igreja era uma maravilha, e disse que uma das grandes contribuições do Cristianismo foi “separar a física da metafísica” e por tabela encerrar a política entre as “coisas deste mundo”. Aliás, se a constituição européia dissesse que a Europa é cristã, não vejo como isso implicaria numa união entre a Igreja Católica e a eurocracia.

(…) As semelhanças entre o marxismo e conservadorismo papal são fundamentais para se entender as possíveis conseqüências de sua análise.

14. Gente como Eric Voegelin atribui a um herege franciscano medieval, Joaquim de Fiore, a origem dos movimentos revolucionários modernos. Resumindo, Fiore dizia que o Velho Testamento representava a era da Lei, a era do Pai; o Novo, a era da Igreja institucional, a era do Filho; e, por fim, o grande vamos dar os braços e ser irmãos cósmico que seria a era do Espírito Santo. Ele acreditava que a chegada de São Francisco inaugurara esta era. Ratzinger fez um trabalho de pós-doutorado a respeito de como certas críticas de São Boaventura na verdade se referem a Fiore e seus seguidores. Portanto, é razoável dizer que o Papa já tem uma multinacional de pipocas enquanto Heidrich tenta entender o que fazer com aquela espiga.

(…) Embora Marx definisse seu socialismo como “cientifico”, no que estava inteiramente errado, o pensamento papal também tem um parti pris semelhante ao não partir do que é o ser humano e sua convivência em sociedade, mas o que ele deveria ser. Sua tentativa se resume em imputar às sociedades uma forma de agir, mal definida, e pautada em um voluntarismo utópico no qual os indivíduos abdicariam de seus desejos pessoais.

15. Admitamos que ele quis dizer “impor” e não “imputar”. Devo entender que a “forma de agir mal definida, e pautada em um voluntarismo utópico” é o famoso “amai-vos uns aos outros”?

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