Banzo

Raimundo Correia

Visões que na alma o céu do exílio incuba,
Mortais visões! Fuzila o azul infando…
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O Níger… Bramem leões de fulva juba…

Uivam chacais… Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estrelada das árvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba…

Como o guaraz nas rubras penhas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto…
Fuma o saibro africano incandescente…

Vai com a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobá… E cresce na alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente…

Glossário a partir do Dicionário Houaiss

colear – deslizar, mover-se sinuosamente
basilisco – lagarto ou serpente fabulosa
bramir – no caso, rugir
fera – feroz
cafre – indivíduo de uma população africana banta, afim dos zulus, não muçulmana, do Sudeste da África
nimbo – uma espécie de árvore
saibro – areia grossa

Leitura e comentário: 2m54s

[audio:banzo.mp3]

Existem duas questões básicas na apreciação da literatura. A primeira diz respeito à relação entre a obra e o assunto ou objetivo. A maior parte dos críticos parece apenas perceber que o assunto ou objetivo de uma obra é x e ficam dando suas próprias opiniões sobre x, como se isso fosse crítica literária e não mera especulação cultural. Não pretendo perder tempo tentando provar que a obra tem ou deve ter um assunto; já a discussão a respeito de qual é ou deveria ser o assunto seria interessante. Já defendi que o assunto de uma obra dramática deve ser os personagens, que as melhores obras não tratam de temas abstratos, mas simplesmente expõem personagens. A segunda questão diz respeito à relação entre a obra enquanto resultado final e as técnicas e materiais utilizados. Se percebemos que um poema pretendia falar de tal assunto, podemos criticar (criticar não significa necessariamente falar mal) sua escolha de palavras, de ritmos, e o sucesso dessa combinação.

O problema da leitura da poesia está no cruzamento destas duas questões. De um lado temos as palavras e sua ordem sintática ou corrida, que dão o significado. A ordem sintática, que obviamente não é exclusiva da poesia, se submete a uma nova ordem formal, dada pela divisão em versos e pela divisão dos versos em sílabas métricas, que idealmente são sílabas sonoras. Num poema, não podemos realmente dizer que uma das duas ordens seja superior. Sem a sintaxe ele não seria inteligível. Sem a divisão em versos e sílabas métricas não seria um poema. E, antes de continuar, uma observação: não estou falando que só há poesia nas formas fixas, porque acredito que até o “verso livre” tem sílabas métricas, mas isto é outro assunto.

Por causa destas ordens temos duas atitudes quanto à leitura de poesia: de um lado, há quem prefira ler o poema como se fosse prosa, fazendo pausas apenas onde a pontuação indicar; de outro, quem prefira respeitar as divisões dos versos e das sílabas e fugir dela só onde for estritamente necessário, isto é, onde houver um enjambement, como em “Sete anos de pastor Jacó servia / Labão…” É mais estranho fazer uma pausa na leitura em “servia” do que ignorar a sintaxe e fazê-la. Na fala do português brasileiro temos o hábito estranho de fazer pequeninas pausas entre o sujeito e o verbo (daí que tanta gente queira colocar uma vírgula ali), mas jamais fazemos pausas entre o verbo e o objeto, exceto quando há o desejo explícito de indicar suspense.

O problema de querer ler um poema privilegiando a sintaxe é bastante óbvio: o poema não é prosa. O problema de querer privilegiar a divisão em versos e sílabas é também óbvio: existem muitos casos onde a ruptura na sintaxe pode causar problemas de inteligibilidade. A solução é simplesmente usar o bom senso na hora de ler e conseguir equilibrar sintaxe e estrutura em versos, o que requer muita habilidade; o melhor leitor, creio, é Auden, e depois Geoffrey Hill. Desta observação nasce um critério para o julgamento de poemas: um poema é tanto melhor quanto combinar as pausas naturais da leitura com a divisão em versos. Naturalmente há casos excepcionais em que a quebra de uma das duas ordens serve para ressaltar um elemento importante, como em “Sete anos de pastor”.

Ainda é preciso dar conta das sílabas métricas. Um verso decassílabo pode ter sílabas métricas porque ouvimos dez sílabas sonoras ao recitá-lo, ou porque, sabendo que ele obedece a este esquema, há uma maneira de recitá-l0 que tem as sílabas necessárias. É preciso pensar que na fala (nas falas de diversos locais e épocas) sempre juntamos e sempre separamos certos sons e palavras. Por exemplo, não consigo pensar em nenhum ato espontâneo de fala do português em se ouça os dois “a” de “venha aqui”. Por fim, um verso pode ter um determinado número de sílabas somente porque podemos cortá-lo deste modo, sem que seja possível dizê-lo de modo natural. E é aqui que chego ao poema de hoje, “Banzo”.

Na verdade, “Banzo” se apóia tanto no enjambement que quase podemos dizer que se trata antes de prosa metrificada; são as abundantes reticências, essas pinceladas impressionistas, que o acabam salvando. Mas o verso final, a famosa “chave de ouro” (como as pessoas puderam levar a sério um título tão cafona) do soneto, só tem dez sílabas métricas se as forçarmos sobre as palavras.

de u / ma / tris / te / za, i / men / sa, i / men / sa / men /   1       2      3     4      5         6       7       8      9      10

A questão é muito simples: na sintaxe, vírgula significa pausa, mas a métrica obriga à ausência de pausa. Só que não podemos ler como se não houvesse pausa, para que não fique ridículo. Seguindo o bom senso, temos:

de u / ma / tris / te / za, / i / men / sa, / i / men / sa / men /
   1      2      3    4      5    6      7      8    9    10    11    12

Este “novo” verso, porém, é um dodecassílabo com ao menos uma sílaba tônica em posição heterodoxa: a sétima. Se fosse um dodecassílabo mais, digamos, direitinho, poderíamos entender que o “imensa, imensamente” também se aplica ao verso e tem a função de ressaltar o tamanho da tristeza. A única maneira decente de ler o verso é como se fosse prosa, dando total ênfase às pausas indicadas pelas vírgulas; elas acabam sendo mais importantes do que a posição das sílabas fortes. O triplo “men” não pode ser alegado como efeito específico do verso, porque a prosa também pode se valer de repetições sonoras.

Apesar disso, “Banzo” é um de meus poemas favoritos. Normalmente não gosto de reticências, mas não quero tirar suas reticências. Dentro da poesia brasileira, que tem uma grande tradição de “exotismo interno” – para alguém da cidade como eu, os índios de Gonçalves Dias são perfeitamente exóticos – mas nada de “exotismo externo”. Os poetas ingleses estavam sempre falando de terras estrangeiras reais e imaginárias, e até pecavam um pouco por ver exotismo demais (Robert Browning achava o catolicismo exótico, o que é tão provinciano quanto eu achar que o protestantismo é exótico). Não me lembro de outro poema brasileiro, certamente não entre os mais famosos, que descreva uma terra distante, um povo distante, um sentimento alheio e distante. Hoje pode ser fácil viajar e talvez alguém que quisesse escrever um poema sobre a África simplesmente fosse lá. Temos, de certo modo, o fetiche do documento, da realidade material, da experiência direta, que leva a afirmar a independência da literatura sem nunca realmente praticá-la. Quisera eu que nossos poetas se libertassem ao menos um pouco da realidade materialmente imediata e se sentissem à vontade para falar de coisas que nunca viram nem verão, sem temer os filisteus que viriam analisar poemas como se fossem obras historiográficas.

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