Até uns 18 anos tive um sério interesse por música popular, não só brasileira e americana, como também de países mais ou menos exóticos. O fato de eu ter podido viver nos EUA naquela época em que nem existia mp3 permitiu que eu gastasse meu mísero dinheiro em CDs, vinis, fitas, livros, e que fosse procurar pessoas com quem conversar a respeito do assunto. Acredito que a França e a Itália superaram todos os níveis da cafonice musical (Paroles é mais Odair José que Odair José), e o gangsta rap está para o mau gosto como Colombo para a América. Mas, ainda que muitas vezes eu tivesse que confiar na tradução das letras, nunca encontrei nenhuma que não pudesse ser compreendida. Mesmo a letra mais pornográfica, abjeta e incestuosa é inteligível e por isso mesmo pode ser propriamente chamada pornográfica, abjeta e incestuosa. Só no Brasil é que se acha normal ouvir canções que se pretendem sérias e cujas letras não fazem sentido nenhum. Um sujeito pode escrever os famosos versos “Açaí guardiã / zum de besouro / um ímã” e ainda pronunciar “ímã” como se fosse “imam”, que é a pessoa que comanda as preces em uma mesquita, e ser considerado não apenas bom, mas até um gênio. Não esqueço da cena de Pérola, de Mauro Rasi, em que a personagem-título alegava com muita justiça que a letra certa era “ao sair do avião”, porque “açaí guardiã” não fazia o menor sentido. Por isso também não esqueço do dia em que um professor de teoria da literatura na UFRJ disse que na música deste suposto artista “a camada do significado passou para a camada do significante”, sem se dar conta de lógica conclusão, corroborada pelas evidências, de que não havia mais qualquer significado. Mas enfim. Só no Brasil se acha normal e bom que alguém escreva uma letra sem sentido e se abra a boca para concatenar palavras que na verdade não se concatenam. Este é o fenômeno irmão de outro, o fenômeno de os brasileiros, os verdadeiros ratinhos de Hamelin, serem muito mais sensíveis ao tom da voz do que ao conteúdo do que é dito, e aqui está também ao menos parte da explicação da fraqueza da literatura e do amor pela neurolingüística: o brasileiro só ama a parte sensível da linguagem, e odeia a parte inteligível.