Em 2005, logo que saí do cinema após assistir a Closer, pensei: “este filme é bom, mas seria melhor se tivesse sido escrito por Nelson Rodrigues”. Descobri que o roteirista era Patrick Marber, e que na verdade ele era também o autor da peça homônima que se transformou no filme. Recentemente fui ver Notas sobre um escândalo (Notes on a Scandal), também escrito por ele, mas a partir de um romance de outra pessoa. Não sei quanto das falas no roteiro é de Marber, mas a mordacidade era a mesma de Closer. E pensei igualmente: se tivesse sido escrito por Nelson Rodrigues, seria melhor. Num certo sentido, até já foi: é O beijo no asfalto. Mas antes quero falar de Closer.
O probleminha com Closer (lembrando: o filme é bom, é até ótimo) é que parece que o tema e a escolha de uma certa atitude estética tiveram uma certa precedência sobre os personagens, causando uma certa sensação de artificialismo. Os homens têm ironia e canalhice cheias de pose; são eles que tomam a iniciativa, e as mulheres apenas cedem. Lembro de ter lido uma entrevista de Marber em que dizia ter escrito a peça numa fase péssima da vida; aposto que estava cheio de culpa. O “tema” do filme é que somos (ou podemos ser) muito mais indefesos diante dos nossos desejos do que imaginamos. Patrick Marber nos entreteve durante duas horas, mas se dissesse só isso teríamos captado a mensagem em dois minutos. Assisti ao filme duas vezes, uma recentemente, e esta é minha lembrança mais viva dele: um tema.
Prefiro obras dramáticas cujo tema são os próprios personagens, porque isto é que gera o máximo de empatia. O tema pode me interessar ou não, e é verdade que eu, como outras pessoas, prefiro assistir a um filme ruim sobre um tema que me interessa a um filme mediano sobre um tema que não me interessa absolutamente. Isto, porém, explica o interesse por obras ruins, médias e até boas; mas, quando se trata de obras excelentes, não parece haver um “tema” abstrato precedendo e ordenando os personagens, como a solução de uma equação pode ordenar a seqüência dos itens a ser calculados. Tome, por exemplo, peças fascinantes de Ibsen como Casa de boneca e Solness, o construtor. O que lembramos da primeira peça não é uma lição, mas o personagem de Norma. Sempre que você pensa em resumir Norma em uma palavra, ou mesmo algumas, vê que nem chegou perto de dizer quem é ela, e sente a tentação de descrevê-la em termos poéticos. De Solness, o próprio personagem-título e a misteriosa Hilda são inesquecíveis. Amamos os personagens, cultivamos sua memória, e sabemos que se você quer falar sobre um “tema” abstrato a melhor coisa a fazer é redigir um ensaio.
Com Notes on a Scandal, a mesma coisa: o filme é sobre desejos frustrados: de um lado uma mãe de família quer um pouco de aventura, e de outro uma lésbica opressora quer que a mãe de família vire sua companheira. A mãe não percebe o interesse sexual da senhora, e esta não vê problema em arruinar-lhe vida – um mal menor diante da possibilidade de torná-la uma dependente emocional sua. No roteiro de Marber, como sempre temos o ponto de vista da senhora lésbica opressora, só lhe resta sugerir que a história se reinicie com um novo encontro dela com uma mulher mais jovem, reforçando a impressão de que o tema teve precedência, porque a personagem lésbica repete suas atitudes em qualquer situação. E é aí que eu me lembro de O beijo no asfalto, em que Arandir, vilipendiado pela mídia, perseguido, escondido, ainda tem que ouvir do sogro, com quem sempre teve uma relação cuja dificuldade atribuía a seu zelo excessivo pela filha: “Ciúme de você!” O homossexualismo do sogro é um elemento que moveu a peça sem que soubéssemos e que vem não só como uma surpresa no final mas como a própria surpresa final. Tudo parece único e exclusivo daqueles personagens naquela situação; não estamos tão próximos de tipos ideais quanto de indivíduos particulares que, assim como Norma, Solness e Hilda, temos dificuldade em descrever sem ter a sensação de faltar com a justiça.
Uma resposta para “Filmes que Nelson Rodrigues deveria ter escrito”
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