A certa pessoa lasciva

Baltazar Estaço (1570-16??)

Se vós víreis donzela que amimava
uma serpe cruel que a ofendia,
e que esta mais amava, e mais queria,
sem embargo do mal que lhe causava,

se vísseis que esta mesma a quem amava,
em pago deste amor a destruía,
e tanto com mor fúria a perseguia,
quanto com mores mimos a afagava,

não pasmáreis de ver que estava entregue
a tal serpe donzela, que se entende,
pois vede que essa carne essa alma mata,

que, quanto mais a honrais, mais vos persegue,
quanto mais amimais mais vos ofende,
quanto mais a servis pior vos trata.

amimar = acariciar
serpe = serpente
mor = maior

Leitura e comentário: 2m10s

[audio:lasciva.mp3]

Tão desacostumados vamos ficando da leitura de textos antigos, e tanto vejo meus professores na UFRJ advogarem que toda forma de falar vale a pena, que me sinto compelido a fazer algumas notas sobre a leitura. Repare que no terceiro verso a palavra “esta” é objeto e não sujeito de “amava” e “queria”. Nos versos 1 e 9 temos “víreis” e “pasmáreis”, usos da segunda pessoa do plural no pretérito mais-que-perfeito que têm o valor de subjuntivo, exatamente como encontramos no já mencionado “Sete anos de pastor”: “não fora / para tão longo amor tão curta a vida”, isto é, se a vida não fosse tão curta para um amor tão longo.


Antologia da poesia portuguesa

Pois bem. Em 2004 participei (e fui creditado com o sobrenome invertido) da Antologia de poesia portuguesa do século XVI: Camões entre seus contemporâneos, organizada pela minha então professora Sheila Moura Hue. Meu trabalho foi escandir todos os versos e indicar os eventuais problemas. A “medida nova”, o verso decassílabo, ainda era novidade em Portugal e os poetas ainda a estavam experimentando.

Através deste trabalho fui apresentado a Baltazar Estaço, padre e poeta que não mereceu mais do que uma menção no texto da minha edição de 1976 da ainda referencial História da literatura portuguesa de Antonio José Saraiva e Oscar Lopes. Também nunca vi uma coletânea individual sua à venda, quanto mais sua única obra publicada em vida, Sonetos, canções, éclogas e outras rimas, de 1604. Mas seus poemas me impressionaram bastante.

O tema deste soneto é obviamente a luxúria: quanto mais cultivada pela donzela, mais mal lhe faz. À primeira vista o leitor pode dizer que lições de moral são repetitivas e por isso mesmo tediosas; que ninguém as agüenta mais, mas nem consigo lembrar de nenhuma grande obra literária que dispense a dimensão moral, nem consigo deixar de ver a lição de moral perder a validade. Se Apollinaire escreveu que “os dias passam, eu fico” (“les jours s’en vont, je demeure”), poderíamos também escrever que os dias passam e os pecados ficam, e que a boa literatura no mais das vezes consiste antes em contar a mesma velha história de um jeito novo e interessante do que uma história realmente nova.

O soneto de Baltazar Estaço certamente não é tão ambicioso conceitualmente quanto um soneto de John Donne, mas toma um único paradoxo – aquilo que a donzela ama na verdade a mata – e o explora perfeitamente em 14 versos. Digo “perfeitamente” porque o Pe. Estaço resiste à tentação de florear o poema com dados desnecessários – uma idéia e quatorze versos; a tentação é grande – e controla bem as informações (aquilo que ainda não sabemos) e as redundâncias (aquilo que já sabemos). O título já indica o tema da luxúria. Talvez os primeiros leitores do poema já soubessem que o autor era padre e por isso já tivessem uma certa expectativa. A donzela acaricia a serpente; e, como a associação entre serpente e pecado é muito mais antiga no Cristianismo (e no Judaísmo) do que as teorias de Freud ou a nossa sensibilidade brasileira moldada por Chico Anísio, acredito que posso dispensar a associação fálica. Duas coisas são particularmente interessantes: a primeira, que em nenhum momento o autor dá a entender que a donzela não soubesse que se tratava de uma serpente; o poema descreve, em vez de avisar diretamente; é um exemplo que supõe um argumento, mas sem explicitá-lo. A segunda, que no décimo primeiro verso temos uma bela ambigüidade entre sujeito e objeto: “essa carne essa alma mata”. Tanto podemos pensar que é a carne pecadora que mata a alma, como podemos pensar que, sendo a luxúria um pecado da alma, ela é que mata a carne. Talvez para o Pe. Estaço não houvesse ambigüidade; mas talvez houvesse. Creio que o vício no álcool e nas drogas seja tão luxuriante, pela relação central com o prazer sensível, quanto a busca desordenada do prazer sexual. Todos têm as mesmas filhas: a indolência, a burrice, a mesquinharia e, por fim, a violência. E existe uma relação clara entre a presença da luxúria e a aparência física: lembro-me de um professor de literatura na PUC que reclamava exatamente da “geração saúde”, dizendo que gente bronzeada e de cara limpa não tinha nada a ver com sexo e luxúria, e que a luxúria tinha a ver com o “gasto”. Pode ser uma visão excessivamente decadentista, ou baudelairiana, mas acho que ele tem razão, e o filme-parábola moderno sobre o assunto, Réquiem para um sonho (do qual gostei muito, mas só vi uma vez), parece concordar. O pecado da alma mata o corpo.

História da literatura portuguesa

Não temos nas escolas (nem nas católicas) o costume de ler poemas com tema moral tão escancarado, como a opção pelo tema moral representasse, na melhor das hipóteses, uma espécie de ingenuidade, e, na pior, o desejo de controlar mentes e incutir idéias. A segunda hipótese me parece nascer de uma atitude profundamente maliciosa, já que explicitar uma idéia é justamente torná-la passível de debate e de recusa. Por isso não consigo atribuir má intenção às obras escancaradamente morais. Má intenção existe em negar valor às obras morais usando desculpas esfarrapadas esteticistas. Má intenção existe em trocar a moral dos atos individuais por supostas causas abstratas, que dispensam o homem da responsabilidade, e é neste ponto mesmo que o poema do Pe. Estaço se torna mais relevante: ao escolher terminar todos os versos com verbos, muito mais do que cair na “rima pobre”, acabou enfatizando o pecado enquanto ação individual. Sem saber, tornou-se um poeta subversivo no século XXI.

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