Manuel Maria Barbosa du Bocage
Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora, insana.
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga.
Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o orangotango a corda à banza abana,
Com gesto e visagens de mandinga.
Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode.
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode.
Eis aqui de Lereno as quartas-feiras.
Glossário
- Chanfana – comida mal preparada ou aguardente de baixa qualidade.
- À catinga – em doses diminutas.
- À banza – pode ser tanto um uso afrancesado redundante (tão típico de Portugal!), porque “banza” é um instrumento de cordas, como “aldeia”: o “orangotango” toca suas cordas diante da aldeia.
- Visagem – rosto ou expressão facial.
- Mandinga – feitiçaria.
- Frioleira – aquelas rendinhas que enfeitavam as roupas dos séculos passados.
- Bode & ditirambo – bode é o animal da tragédia, palavra cuja etimologia dá “canto do bode”, por ter se derivado dos rituais ao deus Dionísio (ou Baco, para os romanos), representado por um bode. Ditirambo é o nome do canto coral dos ritos a Dionísio.
Leitura e comentário: 2m06s
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Na semana passada eu falava da obscuridade, e de como ela influi na apreciação dos poemas. A atitude diante dela é que marca o verdadeiro leitor: quem acredita que o problema está em si e não nos poemas vai tentar elevar-se à altura deles e logo vai adquirir a capacidade de distinguir entre as obras confusas (quase todas) e as realmente misteriosas. O trabalho de desvendar um mistério sem mistificação pode render frutos os mais diferentes; já a confusão mal permite a leitura.
Este poema de Bocage tem diversas “obscuridades” ou dificuldades. Primeiro, é uma piada feita com pessoas mortas há séculos, dirigida a um público igualmente defunto. Pode uma piada resistir 200 anos? Se considerarmos a bela distinção feita por Bruno Tolentino no posfácio de A balada do cárcere entre as jóias e as cartas de amor, vamos ver que sim. Uma relação amorosa termina e anos depois você encontra as cartas trocadas, que não só parecem datadas como podem ter se tornado ininteligíveis; não pelo vocabulário, mas porque você já não se reconhece na pessoa que as escreveu. Mas jóias que tenham sido presenteadas têm brilho e valor próprios, que permanecem evidentes e resistem à mudança dos tempos e das vontades. Os poemas, segundo Tolentino, estão para as jóias assim como as canções populares estão para as cartas de amor. As jóias são dadas em certas circunstâncias; os poemas também surgem de certas circunstâncias. As cartas de amor e as canções populares resistem muito menos à mudança delas. Você pode apostar que Gershwin é tão maravilhoso que será ouvido no século XXV, mas consegue se lembrar de quantas canções escritas no século XIX? O gosto pela música popular de outros séculos é hoje muitíssimo mais esotérico que o gosto pela poesia de outros séculos. Também lemos até hoje os poemas de Robert Browning e Elizabeth Barrett, mas poucas pessoas se aventuram pelas mais de mil páginas de seus vinte meses de correspondência. Os bons poemas é que resistem; é simplesmente um fato.
Sua resistência, porém, não significa que sua compreensão permaneça a mesma. É certo que um leitor de Bocage no século XVII tenha rido imediatamente ao ler o soneto “Preside o neto da rainha Ginga”: ele sabia de quem estavam falando, sabia porque aquilo era engraçado, entendia o vocabulário e as referências. Hoje temos que trabalhar um pouco para entender a piada – e, para aliviar o texto, coloquei as dificuldades de vocabulário num glossário logo após o poema.
De quem Bocage estava falando? Da Academia Nova Arcádia, um clube literário que só diferia dos círculos literários do Brasil de hoje pela sua oficialidade: as reuniões regulares na casa do “fofo conde”, o Conde de Vimioso, que eram presididas por “Lereno”, codinome árcade – e os codinomes árcades adotados nos dois lados do Atlântico são a coisa mais kitsch da literatura da nossa língua – do padre brasileiro Domingos Caldas Barbosa. O poema de Bocage, o primeiro de muitos que dirigiu contra a Nova Arcádia, não é muito diferente daquilo que pudemos ler nos anos 90 em Os sapos de ontem, em que Bruno Tolentino destruiu o ambiente literário pindorâmico.
O padre Caldas Barbosa não era exatamente um poeta, mas um compositor de cantigas populares, e era com elas que animava as reuniões da Nova Arcádia; que hoje não conheçamos suas canções mais leiamos Bocage é mais um exemplo da maior durabilidade da poesia. Barbosa era também mulato, daí que Bocage o chame de “neto da rainha Ginga”, que foi rainha de Angola no século XVII (se você clicar no link, vai ler um artigo que comove pela ingenuidade: a rainha é chamada má simplesmente por resistir à ocupação portuguesa). Daí também que use o mais antigo insulto racista contra os negros, chamando-o de “orangotango”; isto deve ter soado muito mal já naquela época, porque, notem bem, o padre mulato era um membro prestigiado de um círculo literário esnobe, sugerindo que, exatamente como hoje, mais importava ser capaz de incorporar certos trejeitos “artísticos” e ter as opiniões da moda do que qualquer coisa, inclusive ser branco. Não acho que haja necessariamente racismo nos “gestos e visagens de mandinga”: quem já tenha visto as caretas que João Gilberto faz ao cantar há de me entender.
Mas o racismo que Bocage colocou no poema – o fato de ele mesmo ter pertencido por três anos à Nova Arcádia, ao lado de Caldas Barbosa, sugere que ele não era realmente racista – levanta uma questão. É obviamente feio que Bocage tenha chamado o padre Barbosa de “orangotango”, mas isto foi dito de modo propositalmente venenoso; então resta saber se existe algum limite para a sátira literária. Nunca vi um professor de literatura que não glorificasse a virulência (engraçada) de Gregório de Matos e não se derretesse diante de insultos pueris como a Ode ao burguês de Mário de Andrade. Claro que Bocage seria preso se publicasse hoje este poema; e mesmo na época ele só não foi preso – não por crime de racismo mas por ter insultado o conde – porque se escondeu.
Na verdade, um meio literário, apesar de sempre se arrogar o papel de pessoas mais esclarecidas da sociedade, acaba seguindo as regras de qualquer outro meio e parece só estar disposto a aceitar os insultos que se dirigem para quem está fora dele, física ou ideologicamente. O insulto legitimado é chamado de “trangressão” e se torna digno teses acadêmicas. O insulto não legitimado fica sendo apenas uma coisa feia. Do ponto de vista do leitor de hoje, vale o critério individual, e os defeitos literários ou até de caráter de cada autor são sempre mais insuportáveis para uns do que para outros.