Alberto da Cunha Melo
Meditação sob os lajedos, p. 42; em Dois caminhos e uma oração
No esplendor da força, este sonho
de incontrolável desperdício,
esta enganosa eternidade
feita só de tempo perdido:
na época da capinação,
uma festa de outra estação
abafa todos os massacres
no território feito herança
sucessiva de antigos saques;
enquanto as almas mais divinas
jogam dominó nas esquinas.
Duração: 1m36s
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Alguma vez eu li um texto de Baudelaire em que ele dizia gostar de colocar obscuridades em seus poemas. Mas não me lembro de ter lido um poema de Baudelaire que me fizesse perguntar “que raio de coisa isso significa?” Se há neles alguma obscuridade, diz respeito à ambigüidade quanto às posições do poeta. Não necessariamente as posições do homem Charles Baudelaire, claro – muito embora a opção estética pela ambigüidade possa perfeitamente ser um sintoma de uma indecisão pessoal. Não sei se é o caso; mas sabemos que pode-se ler Baudelaire como um satanista e como um cristão; aliás, como T.S. Eliot leu. Também podemos achar que Nelson Rodrigues era um grande tarado e um grande moralista. Ele se dizia moralista. Mas é possível ser os dois: qualquer um que já tenha tentado praticar o Cristianismo já notou o quanto é difícil fazer com que seus desejos se conformem às suas convicções.
De todo modo, a obscuridade assumiu um papel importante na poesia depois do romantismo, sob formas diferentes. Primeiro, a idéia de impor uma visão peculiar do mundo ganhou força. Não uma visão definida pelo senso comum, ou que reagisse a ele, mas que se destacasse. Depois, chegando ao paroxismo com Eliot e superando o paroxismo com Ezra Pound, a quantidade de referências que passou a entrar nos poemas começou a exigir dos leitores uma cultura extraordinária.
Ainda assim, resta a questão: é melhor que o poema dependa tanto assim da cultura do leitor para ter efeito? Um dos meus poemas favoritos de todos os tempos está na série “Funeral Music”, de Geoffrey Hill, e depende em grande parte do conhecimento das teses de Averróis sobre a unicidade do intelecto. O jogo entre a tese da unicidade do intelecto e o sofrimento causado pela opressão sustenta o ciclo de poemas que, como você já está prevendo, pode até chamar sua atenção numa primeira leitura, mas terá de ser apreendido aos poucos. É como contemplar uma longa equação e conseguir retê-la na mente, com o detalhe de que os poemas são apenas trechos delas. E esta é, naturalmente, apenas uma maneira de escrever poesia.
Porém, o tipo mais comum de “obscuridade”, e que mais freqüentemente separa bons leitores de bons autores, é a incapacidade, no leitor, de encontrar algo em si mesmo que se assemelhe à atitude do poeta e sirva de base para suas escolhas estéticas. Durante anos li Auden com perplexidade e quase indignação com o amor que tanta gente tinha por ele, até que um dia a mágica aconteceu. Li Auden e achei genial. Sabia do que ele estava falando.
Porém, é claro que este tipo de experiência traz o risco do engano. Você pode estabelecer uma conexão com um autor a partir de uma má interpretação de suas obras – e não, elas não são tão abertas assim. Muitas leituras são “possíveis”, mas a maior parte delas é idiota. Porém, só os leitores sérios e dedicados vão se preocupar com este tipo de coisa; não estou preocupado com quem leu um poema de um poeta uma vez na vida.
O poema que selecionei hoje tem o último tipo de obscuridade de que falei: parece depender de uma atitude interior particular diante do mundo, e aqui falo de “mundo” em sentido mais amplo. Até a sua última estrofe, o poema pode ser lido como a habitual ladainha pelo mundo que se esvai: temos o “incontrolável desperdício”, o “tempo perdido” que seria um clichê se não complementasse a “enganosa eternidade”, e a “festa de outra estação” que substitui a “época da capinação”: são os “saques” logo abaixo que confirmam a troca da preparação do terreno pela colheita. Você pode dizer que o poema fala do Brasil e de como os estrangeiros imperialistas malvados tomaram nossas riquezas; eu digo que esta opinião é mesquinha e batida demais para explicar um poema de Alberto da Cunha Melo. Se ainda fosse de Thiago de Mello, vá lá. Mas aqui temos um poeta de verdade e um homem inteligente. Por isso, os “saques” da colheita fora de época são obra de quem espera receber tudo e não dar nada; representam a atitude perene que tanto pode estar presente em portugueses que vieram ao Brasil para enriquecer e voltar para sua terra, como em brasileiros que buscam o emprego público para garantir sua própria estabilidade financeira às custas da classe produtiva taxada a não mais poder, e em empresários que fazem lindos contratos com o governo em que este garante seu lucro. De certo modo, todos querem salvar-se do Brasil; e é por isso que “as almas mais divinas / jogam dominó nas esquinas”. Diante da falta de conexão com a própria terra, da “eternidade feita só de tempo perdido”, quem quer que perceba o que acontece sofre a imensa tentação da indiferença à vida pública, preferindo, não sem razão, ocupar-se apenas das coisas da esfera pessoal. Não se trata de algo análogo ao famoso “The best lack all conviction / While the worst are full of passionate intensity” de Yeats, porque no poema temos a festa indevida da colheita abafando os saques e massacres e outra classe de pessoas que escolhe não ter relação com isto.
Este poema foi escrito numa forma fixa inventada por Alberto da Cunha Melo – e não custa lembrar que qualquer um pode inventar uma forma fixa com suas regras; não vamos confundir “forma fixa” com “forma fixa consagrada”, como o soneto – e amplamente utilizada por ele. Seu livro Yacala, que também faz parte de Dois caminhos e uma oração, é uma narrativa toda composta nesta forma e é, talvez, seu melhor livro. Como Paulo Henriques Britto, Alberto da Cunha Melo usa uma linguagem mais próxima da linguagem coloquial das classes cultas, o que, aliás, reforça a idéia de que a obscuridade ou evidência do sentido do poema dependem da semelhança da atitude interior de leitor e poeta – semelhança que, como dei a entender antes, tanto pode vir em outro momento da vida, se não está presente agora, como pode ser obtida através de esforços imaginativos, e acho que não há melhor exercício para apurar o gosto do que esforçar-se para sentir prazer com aquilo que conseguimos perceber que é bom.
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