O Márcio Guilherme linkou um artigo da Chronicle of Higher Education sobre o crescente anti-americanismo da Europa ocidental.
Imediatamente eu me lembrei do divertidíssimo Barcelona, com Mira Sorvino, que mostra como duas garotas espanholas e seus amigos recebem os americanos na cidade, com toda a banal atitude “eu sou um europeu civilizado e você é um bárbaro arrogante, um porco capitalista”. Mas o melhor do filme é que ele não fica na simples comédia de costumes: as atitudes intelectuais dos barceloneses é que, na verdade, movem a trama.
E se vale fazer um comentário sobre o anti-americanismo, lá vai: aqui no Brasil é bem óbvio que o sentimento anti-americano não passa de um ressentimento, uma inveja, a crença idiota de que “nós” somos pobres porque “eles” são ricos. Mais interessante é que é fácil encontrar um brasileiro que inveje a riqueza americana mas é muito difícil encontrar quem inveje sua maior liberdade.
Entre os europeus vejo duas atitudes básicas em relação aos EUA. A primeira é de total adoração: vá à qualquer metrópole americana e encontre muitos jovens que simplesmente não agüentam mais a senilidade da Europa, onde não só tudo é velho e respeitável como esse respeito todo já se transformou no ganha-pão de algum burocrata. Até mesmo Geoffrey Hill, um dos mais “elitistas” poetas modernos, já declarou numa entrevista que foi morar nos EUA porque não agüentava a imobilidade inglesa, e dizia que a melhor resenha de um livro seu tinha sido publicada num jornal microscópico por um anônimo – coisa que, segundo ele, jamais aconteceria na pérfida Albion. Se ele foi para Boston quando já era um poeta premiado, imagine como se sente quem tem 18 anos: como alguém que está num lugar em que não vai acontecer nada porque tudo já aconteceu. No Brasil, é claro, não vai acontecer nada porque o Brasil é uma inércia e não um país.
A segunda atitude é mais complexa e deriva, creio, do forte senso de hierarquia que os europeus ainda têm. Quando, no século XIX, um europeu fazia uma revolução por “liberdade” ele sabia muito bem que só queria derrubar o rei e instaurar uma ditadura a favor de si mesmo, trocar uma ordem por outra. A idéia de liberdade fazia parte de um projeto social imenso, e não era entendida só como “cada um faça o que bem entender sem incomodar ninguém”. Para o europeu continental, isso era a “atomização”, algo muito ruim. Mas os EUA foram colonizados por ingleses, bem menos idealistas por natureza – Alexander Herzen observava que os ingleses já tinham liberdade sem ter feito nenhum projeto – e também mais religiosos, em muitos casos. O projeto puritano derrubado pela Restauração de Carlos II transferiu-se para a América, e a separação entre Igreja e Estado foi feita por eles para proteger a Igreja da política. Como disse o presidente americano representado por Martin Sheen num episódio de The West Wing, separar a religião da política é outra coisa. Parece-me, enfim, que eles não se incomodariam com a “atomização” se ela fosse o preço da proteção da liberdade religiosa, até porque na Inglaterra as disputas entre puritanos e anglicanos custaram torturas e vidas.
Mas o europeu não gosta disso: ele quer ter um grande sentido coletivo, quer ver que o governo lidera a sociedade rumo ao progresso, quer saber qual é a “política cultural”, a “política educacional”, a “política agrícola”. Para ele, a mobilidade social é que é um preço alto demais a se pagar pela perda do sentido de “ordem”, e a fuga dessa ordem redunda inevitavelmente numa suposta “barbárie”, e o europeu prefere, exatamente como o brasileiro, mascarar a escravidão imposta pela burocracia com uma sensação de “sofisticação”.
A burrice da fé na burocracia chega a comover: é como se um escravo confiasse no feitor. Mas a necessidade de entregar suas decisões a outra pessoa e acreditar nela parece ser uma das forças mais invencíveis da humanidade: apenas nos EUA, como é bem claro, há um número muito grande de pessoas eminentemente boas que não apenas dizem não confiar no governo como agem de acordo com essa convicção. Isto, é claro, é motivo de escândalo para os participantes do pacto funesto entre pagadores de impostos (“contribuinte” é um eufemismo abjeto) e burocratas.
No fim, talvez seja só inveja também.