Madrigal melancólico

Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 113

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi,
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

(11 de junho de 1920)

Leitura e comentário: 2m52s
[audio:madrigal.mp3]

No livro Lectures on Shakespeare, Arthur Kirsch reconstitui a partir de notas de alunos o curso que W.H. Auden deu na New School em 1946-47. Auden era um homossexual confesso, o único homossexual religioso (anglo-católico, um ramo anglicano que gosta de preservar as semelhanças com o catolicismo) de que já ouvi falar que admitia publicamente que ser homossexual era pecado. Com esta mesma honestidade ele trata de uma questão que muita gente prefere não ver: as óbvias referências “homoeróticas” nos Sonetos – recomendo esta edição bilíngüe com a tradução de Vasco Graça Moura – sem transformar Shakespeare em profeta gay nem fingir que tudo não passava de um jeito elisabetano de falar da nobre amizade entre varões. E após explicar sua peculiar visão da beleza, diz algo que nos vai trazer a este poema de Manuel Bandeira:

A arte, de modo geral, é obra de pessoas de consciência e tensões altamente desenvolvidas que sentem nostalgia pela inocência da inconsciência. (p. 97)

Logo depois Auden ilustra sua tese com um poema de Hölderlin em que Sócrates explica seu amor pelo jovem Alcibíades:

Aquele que mais refletiu ama aquilo que é mais vivo.

Este é um tema recorrente de diversas maneiras. Sem que haja necessidade de homossexualismo, como o próprio Auden admitiria, vemos homens e mulheres de gênio atraídos irresistivelmente antes por pessoas que são jovens e belas, que parecem ter essa “vida” e que, obviamente, não são seus pares intelectuais, numa relação de deslumbramento e insatisfação mútuas.

Meu conhecimento da vida de Bandeira tende a zero, mas o poema mais do que prova que ele sabia ser um homem “de tensões altamente desenvolvidas” que por isso mesmo era irremediavelmente cativado pela “vida”. O “Madrigal melancólico” mostra-o recusando todas as razões para adorar a mulher (suponho que seja uma mulher por causa do “profundo instinto maternal”) até chegar nela.

Primeiro Bandeira recusa a “beleza”, porque ela é “triste”, é um “conceito”, cheia de “fragilidade e incerteza”. Curioso que a idéia de que a beleza de uma mulher é triste porque é frágil e, em quase todos os casos, será liquidada pela idade, é fácil de apreender, mas o que Bandeira está dizendo é que a beleza existe em nós, interiormente, dando a entender que ela é projetada. É como se ele não acreditasse na beleza exterior, frágil ou firme. Esta recusa tinha de estar na primeira estrofe porque em princípio a primeira razão que qualquer homem tem para adorar qualquer mulher é sua beleza, e Bandeira quer contrariar nossa expectativa para manter o interesse até o fim do poema. Se ele começasse recusando a inteligência ou a possível lembrança da família, teríamos a sensação de que falta um contexto. Por isso, depois da recusa da beleza, sabemos que o poema vai se desenvolver como uma explicação: os possíveis substitutos da beleza vão sendo descartados, ainda que o fato de eles serem relacionados signifique seu reconhecimento. No fim, então, aparece a “vida”, que – e isto me parece muito importante – é um substantivo abstrato, uma qualidade que de maneira nenhuma é peculiar da pessoa amada. O artista neste sentido audeniano pode perfeitamente trocar de amor se a “vida” subitamente parecer mais presente em outra pessoa, e algo me diz que, em tempos (inacabados) de mentalidade romântica, o “culto” da beleza como opção moral já sossegou muitas consciências.

Estrela da vida inteira

Formalmente o poema é “livre”, mas não no mesmo sentido de que verso livre é aquele que ignora a existência de margem no papel, até porque a vírgula que Bandeira usa para separar o objeto direto do verbo adorar do indireto, grave e comum absurdidade da nossa língua, indica obviamente que ele espera que, ao lermos, façamos uma pausa. Muita gente acha que a poesia deve ser lida como se fosse prosa e a métrica não passasse de um camisa-de-força, e Bandeira parece se precaver contra elas, obrigando-as a ler “O que eu adoro em ti [PAUSA] não é a tua beleza” e evitando que o poema caia exatamente no prosaísmo, mantendo, ao contrário, um certo tom declamatório de que ele depende para funcionar. Neste poema, enfim, Bandeira pretende usar vírgulas, pontos finais, fins de versos e fins de estrofes para marcar pausas e suas durações, e apenas isto – o que me parece, aliás, a maior justificativa para o chamado “verso livre”.

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