Dá a surpresa de ser

Fernando Pessoa
Cancioneiro, #120

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(se ela estivesse deitada)
dois montinhos que amanhecem
sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
assenta em palmo espalhado
sobre a saliência do flanco
do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Poema e comentário: 1m58s
[audio:surpresa.mp3]

O amor e o elogio da beleza feminina são talvez os temas mais explorados da poesia – ao menos da poesia que se costuma decorar. Este amor é quase sempre “sublime”, etéreo, não tendo nada a ver com o que as mulheres costumam verdadeiramente esperar. A mulher elogiada é também sempre transfigurada. Mas, da idolatria do amor e da beleza passa-se com muita facilidade ao desejo carnal desprovido de sentimento, a um culto do sexo pelo sexo que me parece tão sem sentido quanto o culto do amor pelo amor. Ambos são estéreis, aliás. Parece não haver nada entre o catarismo de Dante (esse negócio de ele nunca desejar Beatriz nunca me enganou) e a simples luxúria dos poemas pornográficos de Bocage. Os poemas que não parecem pervertidos, seja por idealismo ou sensualismo, costumam tratar só de sentimentos. E, recentemente, autores famosos como Philip Roth e Geoffrey Hill optaram por falar dos desejos físicos e da submissão a eles.

Resta saber onde estão os poemas que vão falar de sexo sem exagero. O exagero não é necessário para a poesia: nunca vi, aliás, uma pessoa que citasse o verso de Blake que diz que “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria” e lembrasse que Blake o colocou entre os “Provérbios do inferno”. Há grandes poemas sobre temas majestosos, e também os há sobre temas pequenos. O que eu quero é um poema que trate de algo que está na escala média: o desejo sexual que nem destrói nem alucina, e nem é tão mínimo que some assim que outra coisa surge na mente. Um poema que não pareça “falsificar” a experiência para atender a uma ideologia pré-estabelecida, seja ela o espiritualismo fajuto dos cátaros ou o culto da matéria.

Até agora não encontrei nada que atenda mais a estes requisitos do que “Dá a surpresa de ser”, um poema de Fernando Pessoa que talvez tenha sido o primeiro que decorei, na minha adolescência – ou, como dizem os americanos, há more years than I care to remember. O primeiro verso, que ficou como título, abre com um tom um pouco filosófico, falando da “surpresa de ser”, mas isto se refere claramente à surpresa e a “aura” que uma mulher parece ter e que chama a atenção, destacando-a e tornando-a mais “real” e “viva” do que o cenário à sua volta, concreto ou fantasioso. O simples pensamento dela faz bem. E a visão de seus seios causa primeiro admiração na imagem dos montinhos que, pela sua própria beleza, pela “surpresa de ser”, amanhecem, têm frescor e vida próprias, mesmo que não haja madrugada. A terceira estrofe fala de onde sua mão está pousada com uma linguagem simples mas ao mesmo tempo indireta o suficiente para que o poema não precise se referir a mais nenhuma parte do corpo. Aliás, a mão na “saliência do flanco” é mão sobre o quadril – hoje em dia qualquer poema que quisesse falar de quadris diria “curvas” nas quais o “poeta” iria “derrapar” – Deus nos ajude. E só na última estrofe, após três de admiração, Pessoa descreve seu próprio desejo, que não é nem de adorá-la como uma deusa vaporosa nem de castigar seu corpo com um instinto implacável: ele pergunta a si mesmo quando poderá se aproximar daquela mulher bonita que ele admira como mulher.

Formalmente o poema é muito despretensioso: quase todas as rimas são na mesma classe gramatical e o metro é de sete sílabas, ideal para um ritmo bem marcado. Não chego a dizer “musical” porque este poema é “falado” e não “cantado” (esta distinção interessante me foi sugerida pelo Leonardo Fróes), mas acho que isto é particularmente bom porque o poema “cantado” é também naturalmente mais “afetado”, menos próximo da linguagem comum – o que, pelo amor de Deus, não é necessariamente um mal. A maior parte dos meus poemas favoritos é “cantada”.

Vale uma palavra final sobre o não-exagero. Não acho que haja qualquer problema com a literatura de fantasia ou com a ausência de verossimilhança. Acho até que, na maior parte dos casos, o “realismo” é um mal estético. Mas a literatura amorosa, com suas mulheres intocáveis e seus amores febris, faz muito mal às pessoas, que certamente negariam a existência de Amor (isto é, Cupido, Eros) como um indivíduo, mas que agem como se ele existisse, como se dependessem exclusivamente de algum encanto exterior a si para continuar amando, ou como se o amor entre homem e mulher fosse algo sublime demais para não ser misturado com o sexo. O primeiro mal acomete sobretudo às mulheres, e o segundo aos homens. Acredito que os tratamentos dados por Roth e Hill sejam um passo na direção desta “honestidade”, ou melhor, desta “medida humana”. E quem também começou a entender isto foi W.H. Auden em “In Legend” (que no link aparece como “Lament” e tem final diferente: já vi o último verso como “Your human love.” e “Love as love.”, este na edição altamente revisada dos Collected Poems pelo próprio autor).

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