Ah, tudo é símbolo e analogia!

Primeiro Fausto
“Primeiro tema: o mistério do mundo”
Fernando Pessoa

VI

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.

Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.

Poema e comentário: 1m54s
[audio:simbolo.mp3]

Três temas são recorrentes em muitos poemas de Fernando Pessoa, ortônimo e heterônimos: primeiro, as coisas que aqui estão não são reais, ou são pouco reais (35 sonnets); segundo, simplesmente pensar sobre o que quer que seja é uma maneira de não ser, e “ser” verdadeiramente consiste na espontaneidade absoluta que se encontra nos seres inanimados e nos animados desprovidos de intelecto (O guardador de rebanhos); terceiro, quem verdadeiramente nos governa é alguém desconhecido ou algum princípio alheio (Súbita mão de algum fantasma oculto…).

O poema deste domingo é talvez o melhor exemplo do primeiro tema. Os 35 sonetos em inglês me parecem convolutos demais, datados para a época, francamente estranhos. Mas o sexto poema do Primeiro Fausto traz concisão de conteúdo e surpresa formal. Concisão porque o poema inteiro só trata do mesmo tema, o fato de tudo ser “símbolo e analogia”. O primeiro verso de cada estrofe como que propõe uma tese e os versos seguintes a desenvolvem, mas sem chegar a ser prolixos – são só três, afinal. Isto pode ser analisado até do ponto de vista da teoria da informação: as redundâncias (isto é, as confirmações ou repetições) dos três últimos versos facilitam a leitura e até a memorização do poema, que não fica tão denso a ponto de parecer hermético – o que, na verdade, não seria necessariamente ruim. Mas é o esquema de “tese e desenvolvimento” que justifica perfeitamente a divisão de estrofes do poema, que, por isso, não é apenas convencional.

Formalmente o poema é construído em dísticos (rimas AABB…), o que é pouco usual em português; com a aliteração, os dísticos são a grande marca do inglês. O uso da palavra “esquecimento” no nono verso também remete ao inglês, porque parece uma tradução de oblivion (Pessoa cresceu na África do Sul e provavelmente era bilíngüe, o que é algo mais do que “saber muito bem” inglês), que em certos casos indica a insconsciência (o segundo tema pessoano que citei), a não-reflexão, ou o vazio. Todos os versos podem ser escandidos em dez sílabas, quase sempre com um tônica na quarta (versos sáficos), mas em alguns deles a pronúncia de dez sílabas sonoras pareceria demasiadamente artificial. Não creio, porém, que a alternância de versos de dez e nove sílabas pudessem prejudicar este poema. Só devemos lembrar que Fernando Pessoa não o publicou, que não sabemos se ele o considerava acabado, se achava que fazia parte de sua obra; lembremos disso antes que desperte o pequeno filisteu em nosso peito. Se ele quiser aparecer, mostre-lhe a perfeita imagem de “a maré vasta, a maré ansiosa” e obrigue-o a reverenciar a grandeza.

Quanto ao som, o poema tem no verso 11 (um dos não-sáficos) um de meus jogos sonoros favoritos, que é a proximidade, no decassílabo, de sílabas fortes nas posições 5 e 6: “São sombras de MÃOS, / CUjos versos são.” Ainda que a sexta sílaba caia num som que no Brasil corresponde a um feio palavrão, na hora de ler o poema não consigo pensar nisso, mas só em como o verso fica perfeitamente dividido, com direito a uma rima interna. O verso-modelo deste esquema continua sendo, porém, o de Camões, “que da occidenTAL PRAIa lusitana”, em que há um evidente crescendo sonoro. Para terminar, observem todos os ecos, todas as repetições sonoras de “é” e “á” na segunda estrofe: provavelmente Fernando Pessoa também só percebeu isto depois de escrever, mas o fato é que o som do poema está lá, “ecoando” o que é dito.

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