Você vai à escola, vai à faculdade, lê os suplementos literários, lê livros de crítica e lê até livros da maldita teoria literária. Todos falam da modernidade e até da pós-modernidade. A modernidade é uma grande conquista. A modernidade é a vertigem. A modernidade é o pastiche, a paródia. A modernidade é a metalinguagem. A modernidade é a demolição de tudo. Você até fica com a impressão de que antes de 1900 o mundo era repleto de ordem e todos seguiam todas as regras, num paraíso de ingenuidade e pureza onde pastavam os bons selvagens literários.
Pois eu vos digo: quanto mais leio obras antigas, mais me convenço de que a modernidade não existe. Tudo que se considera mérito e obra da modernidade já foi feito, no mais das vezes muito melhor, por autores antigos. Não é à toa que cada vez que você abre um prefácio ou lê uma resenha sobre uma obra secular (às vezes multimilenar) lá está a sentença, o atestado de qualidade filisteu por excelência: “apesar de ter sido escrita há tantos séculos, é uma obra muito moderna” (esse é o correspondente formal do atestado filisteu do conteúdo: “está é uma obra muito atual”). Até os críticos e resenhistas, ainda que falem de modernidade em geral quase como estilo de época, etapa do desvelamento do (infelizmente ainda não exorcizado) Zeitgeist, ao examinar obras e autores individuais sempre percebem a sua suposta “modernidade”.
Dando só dois exemplos: não é Aristófanes “moderno” com suas paródias diretas, sua auto-referência permanente, sua discussão do teatro dentro de suas próprias peças? E Dante Alighieri, não apenas com a Divina Comédia, mas também com Vita Nuova, não é moderno? Vita Nuova mistura prosa e poesia, e conta até com um capítulo em que o autor pede licença para explicar que ele sabe muito bem que um dos três personagens principais do livro, o Amor, não é um ser individual: um primor de metalinguagem e questionamento das formas.
A visão historicista e hegeliana da história da literatura (ou melhor: da simples sucessão de obras literárias) acaba também produzindo um pequeno monstro, que é a crença de que, por estarmos vivendo no presente e não no passado, estamos como que “na crista da onda”. Os autores sentem-se mais obrigados a “inovar” do que a escrever bons livros; sentem a grande pressão de não repetir algo já feito, como se fosse melhor escrever algo experimental e ruim (melhor exemplo: poesia concreta) do que repetir formas já utilizadas e ser bom. Por séculos prevaleceu o acordo de que literatura seria mais ou menos falar e escrever bem; hoje, “literatura” é falar algo de um jeito que ainda não foi falado por ninguém e, para repetir o clichê, todo autor precisa reiventar a roda e propor toda uma nova teoria da arte em cada obra de arte, porque a obsessão metalingüística leva a crer que fazer obras de arte é meramente refletir sobre a arte.
Todos lucraríamos em abandonar e enterrar este cronocentrismo e adotar uma visão bem mais horizontal da literatura, como se fosse, nas palavras de Mortimer Adler, uma “grande conversa”. O crítico pode, periodicamente, reorganizar o cânon a fim de mostrar conversas subjacentes que talvez ainda não tenham sido percebidas. Mas não pode, sem querer parecer ingênuo ou mesmo idiota, crer na suposta ruptura fundamental de uma modernidade identificada com o fim do século XIX que serve de parâmetro para tudo que veio antes.
Uma resposta para “A modernidade não existe”
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