Direita, esquerda e a briga ideológica

Se você pegar quaisquer definições de esquerda e direita, vai ver que elas variam de acordo com a posição mais à esquerda ou à direita de quem está falando – o que é inteiramente justo, já que cada pessoa tem direito a seu próprio quadro de referências. Mas isso não impede que alguém deseje formular a questão de maneira um pouco mais precisa, e isso sem incorrer no atual pecado da moda da internet: a postura blasé e pedante de quem quer se mostrar “acima do debate”, coisa burguesinha e sangue-de-barata. Nem no outro grande pecado que é negar o partidarismo, ainda que eu admita que é inteiramente natural haver uma tensão entre as vagas definições (mais sensações, na verdade) políticas aceitas pela comunidade e as auto-definições do indivíduo.

Aqui, e porque este site sempre se chamou “O Indivíduo”, claro que vou dar as minhas definições. A primeira coisa a observar é que esquerda e direita são apenas posições que precisam ter um centro como referência, isto é, é preciso estar à direita ou à esquerda de algo. Do ponto de vista dos libertários americanos e do liberalismo clássico, que adoto pessoalmente, a questão central é a relação entre o Estado e a sociedade. Se você acha que cabe ao Estado resolver os problemas da sociedade, você é de esquerda. Se acha que cabe à sociedade, entendida como grupo de indivíduos livres, resolver seus problemas sem o uso da coerção física que é a característica definidora do Estado, você é de direita. Há naturalmente muitas posições intermediárias: você pode achar que cabe ao Estado resolver certos problemas e não outros.

Se adotarmos este critério, vemos que o Brasil é um país de esquerda, porque aqui as pessoas crêem majoritariamente que cabe ao Estado resolver os problemas. Se esta crença se estabelece como pano de fundo, com o centro mais próximo do estatismo, a divergência entre direita e esquerda girará apenas em torno da maneira como o Estado deve agir. Normalmente, neste ponto, a questão é mudada para a esfera moral e religiosa, a direita ficando com o lado pró-religião e a esquerda com o laicismo, que por alguma razão misteriosa (ou propagandística) é aceito como uma espécie de “neutralidade”. Isto fica mais claro nos EUA: você pode achar que as crianças devem rezar nas escolas públicas, e ser “de direita”; ou pode achar que não devem rezar, e ser de esquerda. Mas nenhum dos lados dirá: “A questão é irrelevante porque na verdade não deveria haver escolas públicas”, resposta que valeria também, desde um ponto de vista libertário, para o embate entre design inteligente e evolucionismo.

Um outro critério, que me parece bastante aceito, é a diferença entre conservadorismo e revolucionarismo. A direita sempre tentaria preservar a ordem atual, e no máximo modificá-la através de lentas reformas. A esquerda tentaria destruir a ordem atual e forjar uma nova ordem, um novo mundo, uma nova sociedade.

Nesse sentido, é claro que é possível dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Era estatizante, operário, se chamava “socialista” e era abertamente revolucionário, isto é, desejava forjar uma sociedade nova e não manter a antiga. Se associarmos “conservadorismo” político, religiosidade e “moral e bons costumes” com a direita, o nazismo fica mais de esquerda ainda. Na verdade, a única maneira de você acreditar que o nazismo foi um movimento direitista (liberalizante por um critério, moralista por outro) é aceitar a distinção entre direita e esquerda proposta por Stálin: esquerda sou eu, e direita são os meus inimigos.

O governo militar brasileiro também é interessante. Do ponto de vista político, isto é, do crescimento do Estado e do seu poder, é claramente de esquerda. Mas perseguia a esquerda nominal – um pouco como o Politburo sempre fez com os dissidentes. O governo militar criou uma censura moralista, mas nunca deve ter havido tanta pornografia travestida de arte como nos anos 70. Apesar da relação de simpatia com o catolicismo tradicional, não podemos esquecer que um rígido moralismo é parte do marxismo ortodoxo, para o qual o homossexualismo é um decadentismo burguês. Por fim, os valores nacionalistas em que o governo militar insistiu foram absorvidos pela esquerda assim que ele acabou, e de fato hoje a esquerda monopoliza a questão da identidade nacional – quem é de direita, como eu, não agüenta mais esse assunto. Aliás, assim que os EUA passam a ser percebidos como o Grande Inimigo, militares brasileiros e esquerdistas se unem. Os dois grupos adoram Hugo Chávez…

Todas estas posições, enfim, podem ser combinadas. Você pode ser estatizante (esquerda), moralista (direita), e contra a religião (esquerda); pode ser anti-estatizante (direita), moralista (direita), e a favor da religião (direita), e ainda pode sofisticar mais sua posição, como é meu caso: posso ser descrito como o triplo direitista de agora, mas, se quisermos trazer para a mesa questões ainda não mencionadas, defendo a separação entre Igreja e Estado (seja sensato: você quer que a CNBB tenha poder de polícia?), e a idéia da monarquia, defendida por muita gente boa, me provoca certa náusea. Você pode, porém, se sofisticar para outro lado, e ser estatizante, moralista e cientificista (um positivista?), colocando-se mais à esquerda do que à direita. Uma esquerda e uma direita honestas se beneficiariam de um discurso mais claro, que fosse além de sentimentos difusos de simpatia ou antipatia. Sem contar, é claro, aquela parte do público que não tem a menor obrigação de se interessar por política.

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