Um pouco de crítica & não-crítica

Alguém pode me explicar qual é o critério para dizer que um microconto é melhor do que outro? Se lemos um poema de Camões e outro de Marcus Accioly, ou um poema de Auden e outro de Seamus Heaney, a diferença pode ser óbvia, mas isto não a torna inexplicável. As artes, da sapataria à confecção de epopéias, têm regras – regras objetivas que servem até para que avaliemos o interesse em incorporar ao cânon as supostas subversões, e isto além de quaisquer preferências subjetivas. Sem a publicação destas regras, os concursos de microcontos viram concursos de “quem agrada mais à banca”.

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Não me admira, porém, a ausência de critérios explícitos. Muitas vezes vejo na nossa internet lusófona “críticas literárias” que são apenas a verbalização de simpatias ou antipatias. A crítica literária também depende de argumentação e prova; por alguma razão, os delicados espíritos que se julgam mui nobres por ler muitos romances costumam ter ojeriza à idéia de ter que provar (ou ao menos tentar provar) alguma coisa, como se isto fosse – alguém escreveu isto, não lembro agora quem – uma profanação terrível da sua preciosa experiência estética. E, ainda que seja saudável desprezar a crítica que trata a literatura como um cadáver, isto não significa que se deva subitamente abandonar o intelecto e valorizar um livro só porque ele conseguiu tirar o pseudo-crítico e mau leitor do seu estado permanente de afetação blasé. O critério “se eu gostei, deve ser bom”, além de ser o mais egocêntrico imaginável, também destrói a possibilidade de diferenciação real das experiências, e com isso a idéia de que possa existir um leitor melhor qualificado que possa, por essa qualificação mesma, atuar como crítico. Sem o desejo de tentar provar algo, o “crítico” é só um palhacinho que quer atrair atenção para si, exatamente como um participante do Big Brother.

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Um outro tipo de crítica comum é aquela que tenta “explicar” a obra, ainda que raramente nos diga se ela vale a pena ser lida ou não. Normalmente essa crítica diz que o livro de Fulano trata “da fragmentação do homem contemporâneo”, “do niilismo na época do fim das ideologias”, mas também pode nos dar a enésima platitude sobre a relação entre linguagem e literatura, como no exemplo abaixo:

…o poeta dispõe-se a escavar a palavra com a intenção de, lá no mais fundo do miolo, extrair a gema da significação. Dito de outro modo: ele espreme o significante para deformar seu significado — ou algo parecido.

Talvez isso, a prestidigitação semântica, essas torções de imagens que desembocam na estranheza, seja a maior marca carpinejariana — e, de quebra, o que tem colocado parte da crítica de cabelos em pé. Um bom exemplo do jeito do poeta está em “Como no céu”, na cena de um casal tomando café da manhã. O flagrante doméstico é interrompido: “O relógio na cozinha/ pupila de faca”. Aproximação torta e estranha, mas dá no que pensar.

Aqui o fator diversão é aumentado porque a autora da resenha (ah, é; era “resenha”, não “crítica”) está na verdade respondendo a uma coluna recente de Wilson Martins em que surgiu uma (justa, acredito) implicância com a “pupila de faca”, “que não quer dizer nada”. Ora, cabia à resenhista provar que quer dizer sim, e explicar o quê. Poderiam até ser diversos significados, presentes simultaneamente, como em tanto da melhor poesia, mas significados distintos. Com isto Martins estaria respondido, bem ou mal; do jeito que está, apenas ficamos nos perguntando o quanto poeta e resenhista foram influenciados por aqueles versos imortais que até já foram motivo de chacota de Mauro Rasi em Pérola: “Açaí guardiã…”*

*Numa cena, a mãe de Rasi está varrendo a sala enquanto cantarola: “Ao sair do avião…” O filho ouve e vai corrigir a mãe, que protesta dizendo que “Açaí guardiã” não faz o menor sentido, que “é claro que é ‘ao sair do avião!’”

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