Sobre a tragédia e sua recepção

Ruy Goiaba aponta, por e-mail, uma inexatidão minha. Ao dizer que Nelson Rodrigues acreditava que a exposição de horrores no palco causaria aversão por eles na platéia, eu me referia a seus métodos (e de outros dramaturgos modernos) para fazê-lo. Eu pensava em um trecho de uma crônica sua, do qual me lembrava vagamente:

Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los.

“O teatro dos loucos.” O Remador de Ben-Hur. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp 13-15

A minha formulação ampla poderia ser aplicada perfeitamente aos dramaturgos gregos, mas o que eu queria realmente observar era que, enquanto aqueles eram personagens um tanto elevados que sofriam por causa de um ou poucos atos (Édipo não sabia que matava o pai e esposava a mãe, Antígona é uma mulher virtuosa que desacata a lei), os personagens modernos são baixos, e muitas vezes a “tragédia” é apenas a conseqüência de sua vida dissoluta, da qual poderiam se livrar se apenas o quisessem. Como me parece que o público contemporâneo mais celebra aqueles personagens decaídos do que os condena, a catarse não acontece, e o tiro sai, com o perdão etc, pela culatra. Esta identificação acontece porque não há uma crença moral forte, sem a qual, como apontou Ruy (citando Eliot), a tragédia é impossível.

E me impressiona cada vez mais que hoje toda a moral pareça estar resumida naquilo que os americanos chamam de eleventh commandment: don’t get caught (”o décimo-primeiro mandamento: não ser pego”). Veja que mesmo as doenças que podem ser evitadas, como a AIDS, são vistas não como a conseqüência de certas ações, mas como a injusta e aleatória punição de um destino injusto. O brasileiro teme males imprevisíveis, como balas perdidas, assaltos e seqüestros – a violência randômica das cidades. A única possibilidade de “tragicidade” está na simpatia pessoal que se possa ter por uma vítima, desde que ela não seja também uma pessoa muito má, e nem uma pessoa muito boa (porque se for uma pessoa muito boa acreditarão que sua bondade é fachada para alguma perversão). Na verdade, a vítima ideal parece ser a pessoa simplesmente inocente, como a menina Gabriela, de 14 anos, que foi morta no metrô do Rio; ou a estudante da Estácio de Sá que foi vítima de uma bala perdida. Relativamente próximas ao “zero” da vida, despertam piedade, porque o público em geral, ao exemplo do presidente da república, considera-se sem culpas e se identifica com elas. Se fossem aposentados, profissionais etc não despertariam sentimentos coletivos (exceto em sua própria classe). Por outro lado, a força que hoje inspira o sentimento trágico não tem, como no mundo clássico, regras claras, nem traz uma punição definida. Qualquer um está sujeito a qualquer coisa, sendo culpado ou não.

Assim, de um lado as pessoas se identificam com os personagens baixos, e não com os elevados; de outro, também se identificam com a vítima pura, mas não necessariamente virtuosa, ou necessariamente não-virtuosa (já que a virtude é hoje uma espécie de perversão, de repressão sexual etc), isto é, sem pecados graves, mas repleta de pequeninos pecados; o que importa é que não haja nela qualquer bem excepcional.

Este é o mundo infernal da pura concupiscência.

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