Poderes diferentes

Anônimo “por modéstia”, Smart Shade of Blue escreve um post inteiro para, somente ao final, atinar com aquilo que eu queria dizer: que há sim poderes de naturezas ou “qualidades” diferentes. Como aqui está o centro do argumento, começo por ele.

O poder político se baseia na força física. O governo determina certas coisas e quem as descumprir poderá sofrer sanções em sua propriedade ou sua liberdade – em certos países, pode até perder a vida. O governo não vai sentar com você e te explicar que você deve pagar seus impostos, nem vai desistir se não conseguir explicar. Ele vai simplesmente cobrar.

O poder intelectual ou sacerdotal se baseia na persuasão (através da retórica, da dialética etc). O padre pode fazer um belo sermão e convencer a audiência da feiúra de um certo pecado. Mas, a menos que este pecado seja um crime, não fará a menor diferença do ponto de vista jurídico cometê-lo ou não. Posso comer todo o sorvete do mundo: isto faz de mim um guloso, mas não um criminoso. Um cientista pode dar uma entrevista e dizer que o ovo tem colesterol. Ninguém sabe direito o que é colesterol, mas tem fé no cientista e lhe dá ouvidos.

Recomendar que não se coma ovos não é um uso do poder político, e nem recomendar que não se abuse do sorvete. As pessoas continuam igualmente livres para comer ou não comer o que quiserem. Ninguém as força, nem as pune. Uma punição moral, como olhares de reprovação do padre ou dos coleguinhas saudáveis do trabalho, não é a mesma coisa que uma punição física.

Este poder intelectual pode limitar o poder estatal justamente por ser diferente dele, por se basear em meios diferentes. O Estado pode declarar que vai fazer uma determinada coisa, e a classe intelectual pode se opor. Isto pode dar certo ou não. Quando houve a guerra do Iraque, a uma parte imensa da grande imprensa americana foi contra, e até o Papa a condenou. Aliás, até este site indicou artigos contra ela. Simplesmente porque a guerra do Iraque foi movida por um governo eleito, isto não anula nem torna ilegítimo o direito que pessoas privadas e instituições têm de protestar contra ela, nem torna este poder uma espécie de poder político. Assim, se a CNBB faz cara feia para uma decisão do governo e este capitula, o poder intelectual limita o político. Se o Marquês de Pombal expulsa os jesuítas, o poder político limita o poder intelectual. O poder intelectual perde credibilidade. O poder político perde força.

Agora posso responder a alguns pontos do que disse SSoB. Primeiro, os exemplos que ele dá são de uso do poder intelectual. Escrever não é ameaçar de prisão. Quem propõe uma falácia, e das mais perigosas, é ele, ao reduzir todos os poderes ao poder político. Em seguida, é difícil entender porque uma instituição argumentar de acordo com suas próprias convicções é agir de má-fé. Hitler, por exemplo, não agiu de má-fé: queria matar um monte de gente e matou mesmo. Pode-se reprovar a Igreja, mas não se pode reprovar alguém, em princípio, por argumentar a partir de suas próprias crenças sinceras. Quanto à primeira imprecisão de que me acusa, bem, não tentei adivinhar suas intenções, mas retirar de suas palavras as conseqüências lógicas. Ao converter-se em partido político, a Igreja poderia instaurar a teocracia – até dentro dos limites da legalidade, cuja elasticidade parece ser bem mostrada por Hugo Chávez, por exemplo. Quanto à segunda, em que me acusa de interpretar seu pensamento de maneira errada, devo dizer que me limitei ao post em questão, porque nunca fui (por favor, não o digo em tom de esnobação) leitor habitual de seu blog para conhecer seu “paradigma” nem os assuntos em que insiste habitualmente.

Não entendi rigorosamente nada do que está dito em “este uso da palavra ‘persuasão’ como salvo conduto é um tanto problemática, já que de longa data sabem os retóricos que a persuasão é um conjunto de técnicas que tanto podem indicar uma ação de boa fé, o convencimento pelo uso da razão, quanto uma ação de má fé, o triunfo da razão mais fraca sobre a razão mais forte.”

A persuasão não é “um conjunto de técnicas”. A retórica pode ser chamada de “um conjunto de técnicas”. O objetivo da retórica é a persuasão. Outro problema surge: técnicas não indicam, isto é, não é uma ação própria das técnicas “indicar” nada. No caso, quem indicaria alguma coisa seria o discurso, o qual é feito usando um conjunto de técnicas retóricas. Poupando-nos o trabalho de esquadrinhar estas metonímias (e outras, como “ações de boa fé” quando seriam “agentes de boa-fé”, pois uma ação má pode ser praticada por alguém de boa fé) e partindo para a interpretação generosa, mesmo que SSoB queira dizer que a retórica pode ser abusada para incutir na audiência o desejo de coisas más, disto não se deduz que seu uso seja intrinsecamente ilegítimo; mais ainda, isto não interfere na linha argumentativa que desenvolvi. Quanto à sua afirmação posterior sobre a Igreja, é difícil ver o que há de mal em uma instituição agir de acordo com seus princípios formadores, exceto se você acreditar que estes são errados em si mesmos. Mas aqui talvez a nossa discussão seja mais difícil.

O único comentário que ainda gostaria de fazer se refere não à substância do post de SSoB mas à sua forma, moldada pelo mais surrado dentre os artifícios retóricos brasileiros (não confundir, aliás, falácias e artifícios retóricos): o tom paternalista e falsamente familiar, a vozinha de onisciência que diz “Eu tenho certeza de que o Pedro sabe disso”, e que é a tia velha do escárnio rafaelesco.

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