As sete perguntas literárias da moda

“Meme” é uma das palavras mais ridículas que já vi. Digo, então, que recebi o atual questionário da moda de Ruy Goiaba, que julgou que também eu daria respostas interessantes. A ver.

1. Não podendo sair do “Fahrenheit 451″, que livro quererias ser?

Tenho que confessar que nem vi o filme nem li o livro Farenheit 451. Pesquisei um pouco no Google, acho que entendi a pergunta, é o livro que eu quereria decorar e tal. Bom, há três livros de poesia pelos quais eu sinto uma familiriadade, e que já reli vezes suficientes para não tremer com a idéia de decorá-los: Vita Nuova, de Dante Alighieri (nas traduções de Jorge Wanderley e Dante Gabriel Rossetti, que ainda não sei italiano); Mensagem, de Fernando Pessoa; e King Log, de Geoffrey Hill.

Ah, também gostaria muito de ser o Eclesiastes; se estivesse num dia mais colérico (no sentido dos temperamentos, não no sentido de “enraivecido”), me ofereceria para ser também o Apocalipse.

2. Já alguma vez ficaste perturbado/apanhado por uma personagem de ficção?

Vou me ater ao “perturbado”.

Duas vezes. A leitura de Dom Casmurro na adolescência me deixou fascinado por Capitu. Descobria simultaneamente a literatura machadiana e a evasividade feminina. Todas as mulheres me pareciam um pouco Capitu – encantadoras e imprevisíveis. Hoje, às vésperas dos 28 anos, confesso que me tornei um tanto mais Machado (não em termos de virtudes literárias, mas de perspectiva, ou da perspectiva que eu lhe atribuo) e menos Bentinho.

O outro personagem foi Hamlet. Li a peça aos 18 anos. Até hoje acho que ninguém entendeu direito qual é a do Hamlet; todos, porém, se identificam com ele de alguma maneira. O injustiçado, o homem diante do absurdo, o cínico, o herói. Mas bem. Hamlet foi o fim da minha adolescência, simplesmente.

3. O último livro que compraste?

Quinta-feira(5 de maio) fui ao Estação Botafogo ver o filme do Kusturica e não deixei de passar no sebo do Espaço Unibanco. Lá selecionei The Oxford Book of Modern Verse editado por W. B. Yeats, e o volume da Britannica Great Books do Milton – aqueles volumes são ótimos de manusear. Pouco antes, comprei mais quatro: The Horary Textbook, do meu professor de astrologia; a excelente edição Astrology Classics de Christian Astrology, de William Lilly; De Amore, o comentário ao Banquete de Platão feito por Marsilio Ficino (em espanhol); e o Commentaire du Songe de Scipion, de Macrobius, que é uma excelente exposição da visão clássica da estrutura do cosmos – ou melhor, de uma determinada visão clássica.

4. Os últimos livros que leste?

Windswept House, de Malachi Martin. A grande vantagem do romance é apresentar todos os ressentimentos e perplexidades dos tradicionalistas em relação ao Vaticano e discuti-los. Por isso, o livro acabou sendo um pouco terapêutico. Martin foi também uma das mais misteriosas figuras da Igreja: um jesuíta que teria recebido pessoalmente de Paulo VI uma dispensa dos votos de obediência e pobreza da ordem, bem como um indulto pessoal para a celebração da missa tridentina. Supostamente, 80% do que está no romance é verdade, e até circula na internet uma lista de correspondências entre pessoas reais e personagens, o que deve ser obviamente tomado com muitas e várias pitadas de sal.

Forewords and afterwords, de Auden. Demorei meses para ler este; pegava poucas páginas por dia, e só lia nas refeições. Auden realiza aquilo que Wilson Martins numa de suas colunas disse ser “o único método da crítica literária, segundo T.S. Eliot: ser muito inteligente”. A medida justa, a ponderação, o amor, a coragem – tudo isto faz de Auden um grande ensaísta. Auden não nega méritos a ninguém, não se intimida com o peso dos monstros sagrados – sem diminuir seu respeito por Shakespeare, pode apontar-lhe um verso ruim sem constrangimento – , e denuncia aquilo que deve ser denunciado, como o uso indiscriminado de correspondências privadas como pretexto para vender livros, atiçando aquela curiositas que é filha de um vício capital.

5. Que livros estás a ler?

Essa é a pergunta mais difícil, porque estou lendo muitos livros. O primeiro deles, que estou lendo há uns dois anos, são os Collected Poems: 1952-1992 de Geoffrey Hill. Leio, releio, volto a certos trechos, revejo. Passo dez dias sem o livro, torno a ele. Ainda preciso escrever mais detalhadamente sobre Geoffrey Hill, um dos grandes poetas do século XX, certamente junto com Yeats, Eliot e Auden, e o primeiro grande poeta (de que eu tenho notícia) no século XXI, pois que está vivo e produzindo. Hill trata de alguns dos “grandes temas” do século, aqueles que não temos como ignorar, mas também não sabemos bem como abordar adequadamente: o martírio, o genocídio. Não se trata, pelo amor de Deus, de poeminhas idiotas de protesto, ou daquela voz de manifestante metrificada. Tentem imaginar uma sensibilidade de barroco espanhol misturada com a engenhosidade de um John Donne em um ambiente puramente moderno.

No tema, comecei há pouco The Catholic Martyrs of the Twentieth Century, mas ainda não cheguei à página 30.

Leio a tradução do Inferno de Dante Alighieri feita por Jorge Wanderley. Apesar da minha familiaridade com Vita Nuova, nunca tinha encarado nada da Comédia. Resolvi começar por esta tradução – JW faleceu durante o Purgatório, e esperemos que isto tenha sido auspicioso – e não tenho qualquer arrependimento. O texto é ótimo, e as notas são ainda melhores, comparando as várias traduções para o português e até para outras línguas. O resultado é que você se sente inspirado a ler todas aquelas traduções, uma ao lado da outra, para ir comparando. Sem contar que JW tem aquela mesma inteligência de Auden, e é capaz de perceber os pontos centrais de um texto; assim, as notas acabam sendo muito valiosas para quem está preocupado em realmente entender a construção da obra.

Carrego sempre na mochila um “Camões portátil”, uma antologia da Lírica feita por Massaud Moisés. Nos momentos de solidão e chatice na faculdade, vou ler pela enésima vez “Babel e Sião” e “Sete anos de pastor”. Camões é um dos grandes poetas de todos os tempos, um homem inteligentíssimo, que tem uma sofisticação de idéias tão grande quanto Shakespeare ou Dante. Outros poetas, como Yeats, têm sofisticação verbal, e pobreza filosófica. Camões é o nosso monumento e é mesmo difícil pensar em alguma coisa da língua portuguesa que exista fora dele.

Leio e releio a obra de Paulo Henriques Britto, inclusive as traduções de Bishop. Britto é um virtuose do verso, que encaixa em difíceis matemáticas a fala cotidiana, integrando a lição de aspereza de João Cabral sem soar cabralino, sem recriar aquela atmosfera de minissérie nordestina da Rede Globo. Ele é urbano, legível, inteligível, divertido, rico do ponto de vista técnico, e tem o mérito de ser o único materialista tranqüilo com sua condição de materialista, que não busca transcendentalizar a matéria para compensar pelo transcendente perdido.

6. Que livros levarias para uma ilha deserta?

A Bíblia, a Patrística, São Tomás, essas coisas. Não estou aqui querendo dar uma de místico não. Meu raciocínio é simples: eu gosto de poesia, por exemplo, porque vivo em sociedade. A literatura não se baseia só no conteúdo do que é dito, mas também na linguagem, que é, na visão rosenstockiana, a própria base da sociedade. Como a poesia que eu leio molda a minha linguagem pessoal, ela molda a minha vida social futura. Se eu não fosse mais ter vida social, não ligaria mais para a linguagem, e a coisa mais sensata a fazer seria me dedicar aos conteúdos essenciais, não importando tanto se eles vêm em linguagem bonita e arrumada ou em linguagem difícil e dura. Os rituais que eu faria já têm as suas fórmulas; não vejo em mim inclinação para criar outras. Tenho asco da idéia de criar “rituais pessoais”; afinal, para que alguém quer um ritual que confirme apenas que você é você mesmo?

Por fim, uma consideração: se você é ateu, e vai parar em uma ilha deserta, só resta o quê? A busca do prazer. Aí realmente é só uma questão de gosto; os livros só têm utilidade enquanto suportes de um prazer mental.

7. Quatro pessoas a quem vais passar este testemunho e por quê?

Bruno Garschagen, porque é um bom amigo que gosta muito de literatura. Alvaro Velloso, para que volte a escrever. Meu colega de Latim, Pedro Eduardo, porque iniciou seu blog e porque é com ele que divido as agruras da Faculdade de Letras da UFRJ – sempre abandonamos aquele baixo mundo discutindo alguma coisa mais consistente do que o conteúdo das aulas. Júlio Lemos, que sempre leio, e que vai dar boas indicações.

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