A língua não é um sistema, ou: Contra Antonio Cicero

O artigo de Antonio Cicero no Prosa & Verso do último sábado é uma síntese perfeita de tudo o que eu acho que a poesia não é nem deveria ser. Seu argumento fundamental é que o poema não é um ato de fala, estando mais próximo da língua, entendendo estes dois termos exatamente como na dicotomia saussureana de língua e fala. Uma refutação da viabilidade desta dicotomia bastaria, portanto, para derrubar o argumento, pois é natural que as conseqüências não resistam à derrocada das premissas. Mas também é preciso demonstrar que os poemas podem se relacionar com a fala, com a língua viva – e, aliás, se não o fizerem correrão o risco de perder o interesse.

Por que não “a língua é um caramelo?”

Saussure define a “língua” como um sistema, mas o pressuposto de que “a língua é um sistema” é tão gratuito quanto “a língua é um caramelo” ou “a língua é uma garrafa de água”. Mas eis que surge um problema: não temos como argumentar contra Saussure porque ele mesmo não se ocupou de provar que a língua é um sistema. Ou melhor, seus alunos não se ocuparam disto. Não há o argumento de Saussure, só há o postulado; e o postulado é pior do que um dogma, porque um dogma católico ao menos se assenta numa tradição e costuma ser debatido por especialistas durante anos antes de ser proclamado. O dogma não pretende inaugurar nada, enquanto que o postulado pretende inaugurar tudo; tanto que, na verdade, ele não seria equivalente ao dogma, mas à própria revelação.

Veja-se ainda que admitir que há um elemento sistemático na língua – porque obviamente há, como na previsibilidade nas conjugações de tantos verbos, na formação de inúmeros plurais etc – é diferente de admitir a dicotomia saussureana mesma. A língua – agora não no sentido saussureano – é antes um conglomerado de elementos, muitos dos quais não são sistematizáveis, nem previsíveis a partir dela própria. Todos os barbarismos vocabulares servem de exemplo para este argumento, bem como as influências gramaticais externas, desde o atual gerundismo anglo até galicismos consagrados como “formas as mais diferentes”.

Elementos alheios aos poemas sempre os determinaram

O pretenso isolamento dos poemas no mundo da “língua” ainda lhes remove o elemento retórico, presente em quase toda a história da poesia. Poemas como a Divina Comédia ou os Lusíadas foram escritos para inspirar um sentimento específico – o temor de Deus, o orgulho português – e outros, como provavelmente a Ilíada e a Odisséia, para o entretenimento e a preservação da memória. Vários outros também foram escritos quase como cartas a um destinatário específico. Sonetos de amor escritos por encomenda ou não, poemas pedindo dinheiro – dos quais Camões fez vários, ou poemas de escárnio, como as cantigas de escárnio e maldizer ou os sonetos satíricos de Gregório de Matos e Bocage. Todos estes, perfeitamente circunstanciais, podem ter adquirido um valor mais duradouro; mas nada seriam sem a circunstância que levou o poeta a produzi-los. O fato é que algo inteiramente alheio ao poema o determinou quase que absolutamente, e o pretenso primado da dimensão estética sobre as demais é algo muitíssimo recente na história da literatura.

As possibilidades de um poema se relacionar com a fala comum, portanto, são inúmeras. Primeiro, em situações mais formais – como ritos religiosos – poemas podem ser utilizados integralmente. Segundo, poemas podem pontuar conversas, inteiros ou fragmentados; pode-se evocar um poema para falar de algo – e não estou falando de conversas sobre literatura. Terceiro, ainda há de haver alguma moça que possa ser conquistada por poemas. Quarto, pode-se rir de alguém com poemas. Estes não são, decerto, os “atos de fala” perfeitamente esquecíveis e banais de que falava Cicero, mas acredito já ter rejeitado suficientemente a divisão entre a “língua” e a “fala”: nem os poemas são tão distantes da linguagem comum (e os que insistem em ser continuam sendo lidos só por alunos de mestrados), nem a linguagem comum é tão banal que não comporte alguma poesia.

A linguagem poética acrescenta à linguagem comum

Creio que o mais adequado seria dizer que a linguagem poética ou literária, ou simplesmente cultivada, confere às palavras novos sentidos, às vezes mais largos, e às vezes mais específicos, como nos jargões. A troca de vocábulos e construções para contextos e registros inesperados é que produz a sugestão poética e imanta as palavras, mas esta sua carga é dada pela arte do poeta, e se dá por uma soma, não pela redução (ou pela obtenção de uma obviamente metafórica raiz quadrada) da língua àquilo que nela há de mais sistemático, ou de “estado de dicionário”. Auden, por
exemplo, matematizou a não mais poder o inglês coloquial, e abusou do tom professoral e misericordioso. Veja como em

“Lay your sleeping head, my love,
Human on my faithless arm”

o “faithless”, que habitualmente sugeriria uma reprovação (“You’re faithless”), ou uma confissão seca(“I’m faithless”), fica associado à idéia de compaixão e de necessidade de ajuda mútua, de certo modo reabilitando a “faithlessness”. Poder-se-ia dizer que ele não fez mais do que atualizar o sistema, como nas novas versões do Windows ou do Mac OS. Mas repito: que sistema? Qual a regra que contém todos os usos possíveis da palavra “faithless”?

Recordemos por fim uma advertência de São Tomás de Aquino: “as essências são incognoscíveis”. As essências em questão são os atos de ser dos entes: o livro ao meu lado pode ser lido, pode ser usado de apoio, pode ser usado para matar um pernilongo; tudo isto, e muito mais, é essência do livro, e tudo isto está contido no livro em potência – exatamente como todos os palavrões, xingamentos, cumprimentos, romances e poemas estão contidos na língua. Mas, ainda que as ações e paixões do livro admitam um limite natural, não há regra sistemática para determiná-las, assim como não há regra sistemática para determinar os usos da língua – agora não mais, nunca mais entendida no perverso sentido saussureano.

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