Poesia e prosa

Não faço questão de esconder que minha paciência para ler romances tende a zero. Existem algumas poucas razões pelas quais eu leio prosa de ficção:

1. O livro tem algum assunto que me interessa particularmente. É, isso aí, assunto mesmo. O estilo pode ser péssimo. Li com alegria as 646 páginas pavorosamente escritas de Windswept House porque o livro tratava de assuntos vaticanos e o autor, Malachi Martin, teria dito que “80% do que está ali é verdade”. Para vocês terem idéia do horror do estilo, um exemplo inesquecível: “The afternoon Sun played impish shadows with the Holy Father’s pen”.

2. O livro é excepcionalmente pequeno e eu sou tomado pelo sentimento de que há uma grande lacuna na minha formação por não ter lido aquele autor. Foi assim que um dia li Daisy Miller, e também o chatíssimo Werther.

3. Sinto uma grande empatia ou simpatia pelo autor. Vocês nunca leram nada só porque o autor parece sentir as coisas de um modo semelhante ao seu? Eu me sinto à vontade com Camilo Castelo Branco e Kafka. É, Kafka. Desde pequeno sempre tive a sensação de que “eles” viriam me buscar, por causa de algo que eu fiz. Eu não lembro o que foi, mas eu sei que fiz. Eles virão. Também sempre tive a sensação de que uma coisa totalmente absurda poderia acontecer a qualquer momento. Mas isso pode vir só de eu ser brasileiro, claro.

4. Eu conheço o autor pessoalmente, ou virtualmente. Aí, a menos que o livro seja excepcionalmente grande, sinto-me na obrigação de ler.

Se o meu interesse é por linguagem, estilo, essas coisas, eu leio poesia. Posso ler qualquer poema só para ver como ele é feito, mas não existe a menor chance de eu fazer isso com uma obra em prosa. Assim, eu mesmo concluo o que o amante de ficções já observou: minha relação com a prosa é totalmente imatura, não-cultivada.

Não tenho nenhum argumento definitivo em relação à suposta superioridade da poesia. Tenho vários não-definitivos, porém: podemos dizer que é mais econômica, mais concentrada, mais formal. Mas é possível desbaratar tudo isto, e com exemplos – de Kafka, Castelo Branco etc. No entanto, me parece que o cinema e o teatro sejam superiores à prosa por uma questão de economia: o leitor é poupado de intermináveis descrições porque simplesmente mostra-se tudo. O contra-argumento é que estou comparando duas coisas de gêneros diferentes. Mas, ainda assim, acho que vou ao cinema toda semana, e leio uns dois romances por ano, se tanto. Já cumpri minha cota de ficção de 2005, aliás.

Eu observo, porém, que os leitores de poesia são muito diferentes dos leitores de prosa. O leitor de poesia é como o corredor dos 100 metros rasos, e o de prosa é um maratonista. Pela sua concentração, a poesia é um pouco exaustiva. Não acredito mesmo que alguém passe horas e horas lendo poesia, mesmo que seja poesia narrativa, como os Lusíadas ou a Divina Comédia. Se não houver uma seqüência obrigatória, abro um livro de poesia em qualquer página, procuro algo que me chame a atenção, e vou lendo aleatoriamente. Eu leio, releio, leio em voz alta; leio as notas, releio os versos, conto as sílabas, procuro o jeito certo de recitar aquilo, a fluência. Ainda não acredito que o poema só vá existir na cabeça do leitor, que seja para ser lido só em pensamento; mas este é outro assunto. O que quero dizer aqui é que os poemas, mesmo os longos, são lidos de maneira breve e intensa, são estudados, são espontaneamente memorizados e repetidos (um “re-citados” ficaria mui acadêmico para o meu gosto) a toda hora: no trânsito, no banho, nos corredores da faculdade. Pouco a pouco o poema vai se tornando mais real e mais presente, como uma pedra que você fosse lapidando.

Os leitores de poesia – e, por favor, poesia, não este prosaísmo em versos que hoje abunda – costumam ser pessoas mais sérias, mais travadas, mais duras, mais “jacobinas”, por assim dizer. Eu sou assim; posso ser muito irreverente ou muito sério, mas tenho uma séria dificuldade com o meio-termo. Não estou dizendo que isto é melhor ou superior; muitas vezes eu adoraria ter uma reação espontaneamente adequada à medida das coisas. Mas os leitores de poesia costumam ser extremos, enquanto que os leitores de prosa são mais adaptáveis, por assim dizer. Apreciam uma pequena boa coisa sendo uma pequena boa coisa; um amante de poesia precisa tornar a pequena coisa grande e importante – “to see the world in a grain of sand”, para dar um módico exemplo. Leitores de prosa também apreciam mais o wit, que um dia soubemos chamar em português de “espírito”; e falam uma linguagem mais próxima das outras pessoas. Leitores de poesia são um tanto ensimesmados, usam palavras com sentidos muito específicos, e o tempo todo parecem estar diante de algum mistério, no bom ou no mau sentido.

Fico tentado a dizer: leitores de poesia são mais cariocas, leitores de prosa mais paulistas. É só uma frase de efeito, um tanto hermética, mas e daí?

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