Música e misericórdia – mensagem de Natal

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Muito recentemente eu comecei a ouvir Madredeus. Não preciso ficar aqui tecendo os elogios mais que merecidos à voz de Teresa Salgueiro; só sei que anteontem eu ouvia a canção “Haja o que houver” e lembrava do famoso trecho do Mercador de Veneza sobre a música, que diz que o homem insensível a ela é capaz de traições e armações; que seus pensamentos são escuros como o Érebo.

Claro que, por um lado, essa afirmação é absurda; não gostar de música não faz obrigatoriamente de ninguém um ser malévolo. Mas, como toda expressão poética, ela é ambígua, e também expressa uma verdade. O que Shakespeare quer dizer? Investiguemos.

A música é uma obra de arte que só se realiza no tempo. A música pode até sugerir intelecções que são instantâneas e por isso mesmo “não-temporais”; isto é, ainda que a intelecção se dê no tempo, a impressão de instantaneidade dela se opõe à sucessividade do tempo. Por isso podemos até trazer à mente em um flash intelecções que tivemos, mas só podemos apreciar a música se soubermos esperar, se soubermos lidar com o tempo. A música começa, nos envolve aos poucos, nos leva até algum lugar nas sensações, e depois nos abandona – muitas vezes agitados, calmos ou mesmo purgados de alguma sensação, mas sempre modificados. Isto, é claro, se ouvirmos a música com atenção. Para realizar seu efeito, a música requer docilidade e entrega.

Seguindo este raciocínio, para Shakespeare o homem insensível à música não é dócil, não é crédulo, e não sabe lidar com o tempo. O que isso quer dizer, porém? Os seres humanos vivem no tempo – o tempo que é, por exemplo, o intervalo entre um desejo e sua consecução. Quem é “dado a armações” deseja cortar caminho entre o pensamento e a coisa, sem respeitar o tempo próprio de obtenção de algo, porque este tempo próprio está incluído na maneira própria de sua obtenção. Os jovens não podem ser sábios; os pobres, salvo milagre ou prêmio de loteria, não podem ficar ricos da noite para o dia. Então, para aceitar bem a música, é preciso estar muitíssimo presente em seu aqui-e-agora, com muito respeito pela própria circunstância, sem querer modificá-la ao menos por alguns minutos. Ou seja: é preciso humildade.

Apesar disso, a sensação de purgação e alívio que a música traz é muito análoga à sensação trazida pela misericórdia, que é justamente um rompimento com a ordem necessária das coisas. Pela necessidade, só deveríamos ter a justiça, isto é, a retribuição; para obter a misericórdia, precisamos ser muito humildes. Por isso ao ouvir música muitas vezes não apenas somos humildes no sentido de respeitarmos as circunstâncias, mas também vamos nos reduzindo e deixando que a música seja tudo; porque queremos, precisamos dessa misericórdia que a música traz por analogia.

É aqui que chegamos no Natal: a misericórdia de que precisamos, mas sem analogias. A misericórdia literal que vem dos céus. Nós não poderíamos nunca pagar por nossos pecados, mas Deus veio e pagou por eles por nós. Nós poderíamos estar condenados para sempre, poderíamos nunca mais termos segundas chances cósmicas, poderíamos ficar com a ficha suja, sujeitos aos acusadores deste mundo e do outro, mas Deus entrou no tempo, na circunstância, e abriu para nós essa possibilidade.

Da próxima vez que você ouvir música, pense que ela simboliza isto; quando achá-la maravilhosa, lembre que ela é só um símbolo.

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