Minha formação (VI)

Yeats

Sei mais poemas de cor de Yeats do que de qualquer outro poeta, o que certamente diz algo a meu respeito: no quesito “fatores subjetivos”, mencionado no post anterior, acredito que Yeats e eu temos o máximo de empatia. Pode parecer infantil permanecer ligado a um autor por razões de empatia, mas tenho a dizer em minha defesa que, no caso de Yeats, trata-se de um poeta maior, com quem sempre é possível aprender algo; é muito difícil superar Yeats, mesmo como leitor. É bem mais fácil superar interiormente 99% dos poetas brasileiros, e nisto não vai um pingo de antibrasilianismo.

Quando eu falo em “superar”, refiro-me a assimilar um universo de experiências descrito ou sugerido pela obra de um poeta. Claro que o universo de experiências do próprio poeta pode ser maior, ou bem maior, do que aquele que sua obra expressa; mas até por isso estou falando da obra, não do poeta. Que sou eu para Manuel Bandeira, ou que é Manuel Bandeira para mim? Só nos comunicamos através de seus livros – os quais, aliás, ficam nos temas do saudosismo (Evocação do Recife), do amor simples (como as cartas que meu avô / escrevia a minha avó), da descrença no amor (porque os corpos se entendem, mas as almas não), do desejo por uma vida fácil e deleitosa (Vou-me embora pra Pasárgada). Não digo que tudo isto não seja maravilhosamente escrito, porque é: Bandeira é o maior versemaker do Brasil e um tradutor de poesia estupidamente bom. Mas os temas são pequenos, em face dos temas abordados por outros poetas. Eu poderia dizer que desde 1922 a poesia brasileira (cuidado, porque isso é obviamente uma generalização) caminha para as amenidades, mas a verdade é que esta tendência já está presente no nosso arcadismo, com Marília de Dirceu ouvindo promessas de que terá uma vida de classe média urbana e chata, e no nosso romantismo, cheio de sabiás que são apenas sabiás e nunca símbolos, cheio de bananeiras e palmeiras que só dão saudade por atavismo infantil. Nossas crianças românticas, infelizmente, nunca foram nem um pouquinho metafísicas.

Os temas de Yeats são, em sua grande maioria, grandiosos: primeiro, o amor insistente por Maud Gonne, a atração erótica irresistível, e o ressentimento que veio de este amor não ter sido correspondido – When you are old, No second Troy. Segundo, a admissão, através da voz de uma personagem, de que isto não o impediu de encontrar no sexo o prazer carnal (A last confession). A formulação de um dilema destes entre os amores da alma e do corpo (e o plotiniano wannabe Yeats merece ser categorizado assim), fora do esquema cristão da salvação e do pecado, equivale – se considerarmos, é claro, que os poemas são expressões de dilemas internos de Yeats, o que é uma posição bastante questionável – a uma espécie de barroco pagão: quero esta mulher que me inspira, mas como ela me rejeita devo me divertir com as que aparecem. Acredito que todo este “barroco pagão” poderia ser integralmente colocado no saco do pecado, mas ainda estou esperando o teólogo que vai explicar isto. Este tipo de atração que Yeats teve por Maud Gonne me parece não um assunto da teologia moral, mas da teologia mística.

Yeats ainda escreveu vários poemas “metafísicos”. Confesso que acho muitos deles ilegíveis, como a primeira parte de A dialogue of self and soul. Mas os poemas em que assume uma postura acima do tempo (ainda que associe este “acima do tempo” com algum tempo passado) para descer e lenha no presente são imbatíveis: The second coming, por exemplo, contém talvez os maiores versos do século XX, “the best lack all conviction, while the worst are full os passionate intensity”, que revelam um observador exasperado pelas circunstâncias, mas ao mesmo tempo distante delas o suficiente para poder nomear o que acontece com clareza. Yeats disse o que muitos de nós tentamos dizer, e este é um dos testes da grande poesia. Em Sailing to Byzantium (este e “No second Troy” eu recitei para mim mesmo incontáveis vezes), a música sensual e contagiante dos versos contrasta com a música sensual em que os jovens se perdem (e olha que Yeats nunca viu um trio elétrico); através da sua invocação solene, no final, Yeats parece também querer convocar o leitor a ouvir de novo a música do espírito.

Acredito que, se juntarmos todos os elementos “típicos” do romantismo propalado pelos livros didáticos, Yeats é o mais perfeito romântico: fantasmagórico, mistificador, místico e cultor da natureza, mas ao mesmo tempo voluntarista, utilizando uma linguagem mais próxima da linguagem das classes médias (como queria Wordsworth no prefácio das Lyrical Ballads) do que uma linguagem “preciosa”, e, além de tudo, político – e os poemas políticos de Yeats são, para mim, imbatíveis: só quem não fala inglês ou tem coração de pedra pode não se emocionar com Easter 1916. O fato de Yeats contar no poema a história de algumas das pessoas mortas pela polícia inglesa no massacre da Páscoa – a mulher que discutia tanto que ficou com a voz esganiçada, o dono da escola – faz com que o horror ganhe rosto: não se trata de um mal estatístico, anônimo, matemático, conjetural, mas deste mal aqui-e-agora, feito a estas pessoas específicas. As “palavras polidas, vazias” podem não dar conta dos sentimentos despertados pelo horror, mas as palavras do poema nos ajudam a não esquecer e a não transformar o mal em uma abstração. “Ah, o mal”. E de repente a polícia inglesa mata seus amigos que faziam uma passeata, o World Trade Center é derrubado por dois aviões, o metrô de Madrid é explodido.

Este é um dos contrastes mais interessantes da obra da Yeats. Suas obsessões privadas são todas removidas do mundo: ele sugere que, na velhice, deve ficar só com Platão e Plotino (e sua leitura de Platão e Plotino nunca passou daquele negócio do “mundo das idéias”); sua musa, Maud Gonne, nunca lhe deu bola; suas preocupações pessoais declaradas são todas metafísicas; mas seus poemas políticos são os mais vigorosos já escritos, mais conectados com eventos reais e específicos, sem apelar para um Zeitgeist ou para tentativas de enunciar o sentido cósmico dos acontecimentos. Graças a Yeats, lembraremos sempre quem foram Connolly e Pearse – num sentido, da mesma maneira que Homero nos faz lembrar de Aquiles e Agamêmnon.

A obra de Yeats mereceria um vasto ensaio, escrito por alguém muito melhor do que eu. Aqui, não quero discutir sua associação com a teosofia, seu pseudo-misticismo, suas peças (que Eliot dizia serem ótimas). Quero apenas mostrar, para as pessoas que lêem o que escrevo, de onde vêm as idéias que estão na minha mente, como o meu próprio gosto se formou. É uma questão de honestidade: é justo que o público saiba quem é que está falando.

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